Heloisa Seixas - O livro dos pequenos nãos
O romance de Heloisa Seixas é inspirado nos pequenos nãos que mudam as histórias, no poder das pequenas decisões de momento, muitas vezes impensadas, mas que são capazes de alterar o nosso destino para o bem ou para o mal. Mas, afinal, existe um destino imutável e preconcebido ou tudo se resume a "um deus perverso e manipulador chamado Acaso mexendo as cordas por mexer", criando a ilusão de um possível livre-arbítrio? Tema fascinante que a autora, uma tremenda contadora de histórias, desenvolveu com narrativas distanciadas no tempo e espaço, mas que guardam entre si algum tipo de ligação entre os personagens.
No livro, o eixo narrativo principal conta a trajetória de Lia, uma misteriosa protagonista, ao longo de uma noite de sábado no Rio de Janeiro de 2018. O ponto de partida é um jantar com uma amiga em um tradicional point carioca, o Bar Lagoa, onde elas conversam sobre as bifurcações que se apresentam em nossas vidas e as consequências de ir para um lado e não para o outro. De lá, Lia sai de carro sem um rumo definido, mudando as opções automáticas que faria para voltar para casa na zona sul, enquanto relembra passagens do seu relacionamento com Tito, fazendo uma rota que acabará por levá-la para o subúrbio da cidade e situações de perigo.
"Lia mantinha os olhos fixos no asfalto à frente, mas podia ver a sombra das próprias mãos pousadas sobre o volante. Mãos soberanas, pensou, lembrando-se de um pequeno texto que tinha escrito anos antes. Às vezes lhe acontecia de sentar e rabiscar alguma anotação ou ideia, sem entender bem o que significava. Como se alguma coisa lhe soprasse, alguma coisa que queria aflorar, dar um testemunho, tomar as rédeas. Observou quando a mão direita se descolou do volante e navegou no escuro do carro em direção ao câmbio, engatando a marcha de força, para fazer mais devagar a curva perigosa. Era estranho pensar nessa palavra, perigosa, pensar em qualquer coisa que lhe transmitisse a ideia de risco, porque, agora que fugia, sentia-se leve, tomada por uma espécie de euforia, maior do que o medo, do que a dor, do que tudo." (p. 12)
A autora intercala a noite de Lia no Rio de Janeiro contemporâneo com outras histórias, ligando passado e presente. Assim, sem que o leitor perceba, é transportado para o ano de 1897 para acompanhar um médico do exército que toma parte na terceira e desatrosa campanha, comandada pelo coronel Moreira Cesar, contra Antônio Conselheiro no sertão de Canudos, de um total de quatro expedições militares que foram necessárias para vencer a resistência da comunidade sertaneja, finalmente massacrada. No desespero da batalha, a vida do médico dependerá de uma decisão inconsciente: buscar um rolo de gaze para estancar o sangue dos feridos. Um texto de tirar o fôlego com base em pesquisa histórica precisa e no clássico de Euclides da Cunha, Os sertões.
"1897 - A gaze - Um pedaço de gaze. Foi o que fez toda a diferença. Só um pedaço de gaze rústica, quase uma estopa, fiapos de algodão cru entrelaçados, formando a matéria banal, cor de creme, ligeiramente elástica, cortada em tiras pequenas, ou talvez em quadrados. Não, melhor pensar em tiras enroladas sobre si mesmas, criando membros roliços e algodoados, como dedos acomodados em caixas de vidro. Gaze. Só um pedaço, mais nada, um rolo de esxtensão desconhecida, capaz de caber na palma da mão, pano e carne formando juntos o território mínimo que separa a vida e a morte." (p. 17) // No dia em que partiu, o homem não sabia de nada disso, da gaze, da vida e da morte, era ainda um barro cru, inocente, maleável, personagem pronto para ser moldadopor mãos invisíveis. Tinha menos de trinta anos, casado, dois filhos. Ainda teria outros seis, e um deles seria a chave de tudo, mas isso ainda não importa. Voltemos a ele – trinta anos, casado dois filhos. Não era bonito, mas seu nome, sim: João Alexandre. Tinha uma patente e uma missão. Era capitão, médico do Exército, já conceituado, servindo na cidade de Salvador, na Bahia. E se preparava para lutar uma batalha histórica – embora perdida –, sem que tampouco tivesse consciência disso. Naquele mês de fevereiro de 1987, João Alexandre e seus companheiros embarcavam para se bater com os homens de Antônio Conselheiro no sertão de Canudos." (p.19)
Em mais um deslocamento no tempo e espaço, acompanhamos as férias de outra personagem em Vila do Conde no litoral norte da Bahia em 1935. Angélica tem só doze anos, mas já é uma moça de olhos verdes "que compensam qualquer possível falha na aparência". Contudo, enxerga muito mal e é dependente de um óculos de lentes redondas e hastes de fio de ouro. A chegada do bando de Lampião nas proximidades da cidade colocará em risco toda a família, um perigo para "menina moça, com as carne macia", conforme alerta do vizinho, que é "alto, moreno e musculoso". Os óculos de Angélica, muito semlhantes aos do temido Lampião, terão um papel decisivo nesta história.
"1935 - Os óculos - Com a mão trêmula, a menina ajeita os óculos no nariz e sai do canto escuro, embaixo da cama, onde se escondeu. O suor lhe desce pelo rosto, pela nuca, pelas costas e ensopa a camisola de algodão, toda amarrotada e suja de poeira. Amparando-se na cama, consegue ficar de pé. Mas não chora. Lábios apertados, olhos abertos a ponto de quase soltar das órbitas, seu rosto é uma máscara. [...]" (p. 71) // "Logo vê alguma coisa. Entende que foi despertada não por um som, mas por uma imagem. Uma forma, uma sombra, algo que se forma na parede do corredor, recortado pela luz vermelha da santa. A silhueta distorcida é como a de um gigante. A menina fica imóvel, como que hipnotizada. Não pensa na mãe, nos irmãos, em nada. Seu cérebro amortecido pelo terror não chega a fazer uma associação entre a sombra projetada no vermelho da parede e os rumores que ouviu na véspera, sobre a possível chegada do bando de Lampião a Vila do Conde. Naquele momento, ela é um bicho, um animal assustado que precisa, se for impossível correr, ao menos se encolher até desaparecer da vista do predador que se aproxima." (pp. 93-4)
Sobre a autora: Heloisa Seixas nasceu no Rio de Janeiro e é autora de mais de vinte livros, incluindo romances, contos, crônicas e infantojuvenis. Entre suas peças de teatro, está O lugar escuro, adaptação de sua obra homônima sobre a doença de Alzheimer. Heloisa foi quatro vezes finalista do prêmio Jabuti, com Pente de Vênus, A porta, Pérolas absolutas e O oitavo selo, este último também finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Oceanos. Pela Companhia das Letras, lançou Agora e na hora, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e A noite dos olhos.
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