Raul K. Souza - Ligações que rasgam
O curitibano Raul K. Souza faz desta antologia de poemas de estreia uma autobiografia muito especial ao relembrar de ligações afetivas com amigos e também referências de outros autores como Allen Ginsberg, Sylvia Plath, Leminski e Ana C, que marcaram a sua formação de poeta, uma espécie de cartografia da memória com flashes da infância até a maturidade, ou quase, cobrindo um período de vinte anos. Enfim, ligações que rasgam ao representar uma coleção de acertos e desacertos a qual costumamos chamar de vida. O curioso é que ao citar aspectos tão particulares da sua vivência e que obviamente não temos como conhecer, Raul acaba passando veracidade, fruto da experiência ou da sensibilidade, mas que provoca identificação imediata no leitor.
Essa é a mágica da literatura, quanto mais intimista o foco, mais abrangente é a representação humana. Difícil, sem dúvida, mas é preciso continuar, me lembra Beckett em O inominável: "(...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar."
O livro é dividido em quatro partes com curiosos títulos que despertam a atenção: "a primeira hora do ruído", "uma pizza e dois pathos com gelo", "m. é uma costela de gatling assada" e "use o interfone agora". Deixo com vocês alguns exemplos da poesia de Raul K. Souza.
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meu melhor amigo e eu
subíamos em árvore para discutir filmes,
planejar nossa aventura
na locadora mais próxima.
em 2002, tínhamos laboratório de pedaços,
sucata e milho
cantávamos as bandas e desafiávamos os outros do bairro
em nosso palco de piso, casa derrubada
e odiávamos sermos os fracos da rua sem asfalto,
odiávamos principalmente meu primo
e os colegas da escola particular do meu melhor amigo.
como poderiam saber eles o final dos animês favoritos
a última carta inovadora do yu-gi-oh!
a tendência daquilo que nem tinha chegado ao brasil 2002
onde acontecia o atual
ainda se é jovem na casa
são dois
a torneira vomitou uma onda
até o quarto
a porrada veio sem força
quando acertou o ruído do anjo
no documentário que passava na sala
acordo em três cabeças
nas manhãs de quarta-feira
há vestígio de urro
e de masturbação
fora dos telhados
e um cobertor fedendo a mijo
sobre os ombros dos teus vinte anos
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404
houve um lugar chamado 2012 entre o seu riso encharcado e o
meu braço tímido,
houve um lugar de quatro braços tateando livros como se tatuas-
sem o ano ao redor da mateus l.,
houve uma religião, mas todas as quartas eram evitadas, porque
quarta é o pior dia para começar no quarto que era,
304
ouve esta história na janela, segura tua garrafa de bebida no peito,
o amor sobre a pia e a universidade que pula atravessa a imagem
de john coltrane,
ouve esse grupo de pesquisa, me passa seus cigarros na cama
quando eu te passo duas mãos e o sentimento do muro,
ausculta a fumaça do banco de criança incendiado como quem
arrisca de vulnerabilidade ao telefone,
204
bom dia, aqui é francieli da Lady Lázarus Ltda:
preste atenção, querida, ainda
cai um pouco da sua vida
em pouco tempo
seremos duas deitadas
na linha mais ligamento
que cartografia,
bom dia, aqui é raul da Uivando no Telhado Comunicações:
há um preço
para olhar minhas cicatrizes, há um preço
para ouvir meu coração
térreo
atenda agora
e me conta das 404 perdas,
das 404 garrafas e histórias de amor
enquanto alguém dança um samba no tapete da sala
enquanto eu busco a pizza de escorpião &
creme de pathos em virgem,
me conta da tua solidão
não vou escrever a carta, mas eu busco a caneta
encantada, a bebida mágica e o cigarro
mais barato no posto iluminado, igreja de todos
os errantes noturnos
me conta dos 404 objetos que inventamos
e se ainda existem objetos quebrados
seus ombros já carregaram o concreto
mas a alma abraça a mesa dos quase 30,
com meu pedaço de mapa
um ombro de terra
com algo que continua
Sobre o autor: Raul K. Souza é natural de Curitiba, com formação em Filosofia, largou uma especialização em Direitos Humanos para andar de bicicleta e depois também largou a bicicleta. Escreveu o Zine independente Astronautas pedem uma pizza e dois pathos com gelo (2017), produzido junto de Francieli Cunico e de Antonio Lopes. Muito crítico, pois virginiano.
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