De tudo um conto - Organização Cíntia Moscovich
O título desta coletânea capta muito bem a variedade de temas abordados pelas sete escritoras gaúchas que compartilharam as aulas on-line de escrita criativa de Cíntia Moscovich ao longo de 2020, triste e inesquecível ano da pandemia. O resultado representa a expressão de diferentes vozes femininas diante dos impasses da vida contemporânea em histórias simples – ou não tão simples assim – do nosso cotidiano nas grandes cidades ou no campo, contadas em estilos que podem variar do romântico ao humor ou do surrealismo ao realismo fantástico, mas sempre com originalidade. A edição reúne três contos de cada uma das autoras: Cristiane Costi e Silva, Graziela Feijó, Inês Lempek, Márcia de Lima Canez, Maria Graça Pinto Ferreria, Martha de Moraes Coelho e Sinara Foss.
O texto de apresentação, As sete gurias que contam, da organizadora e também gaúcha Cíntia Moscovich, resume bem o projeto, uma iniciativa para combater a inércia criativa provocada pelo coronavírus: "Durante a pandemia, o medo fez com que muitos de nós paralisassem a vida. O anúncio da morte a adejar, a incerteza e a crueldade, tudo isso fez com que recuássemos e nos resguardássemos – e se sabe que o medo não é o melhor lugar para a criação. Um grupo de sete mulheres – de gurias, melhor dito – não se contentou com andar sem criar ou construir. Atendendo a meu convite, eu, que sempre tive medo de parar, conseguimos fazer aulas on-line, descobrindo literalmente juntas o que era o tal Zoom, como funcionavam os quadradinhos, como podíamos ficar juntas mesmo separadas."
O conto de abertura de Cristiane Costi e Silva, Entre pálpebra e retina, nos traz todo um universo sensorial com a sua prosa cinematográfica e nos faz sentir na areia quente da praia lotada como meros observadores, juntamente com a protagonista, de um dia de sol com todas as cores, sons e cheiros característicos, tão comuns à nossa própria lembrança. No entanto, no curto espaço de manobra do texto, há uma transição sutil entre a alegria e a confusão do ambiente externo para um estado de ânimo melancólico da personagem ao observar o marido (e seu princípio de barriga) distanciando-se em direção a um mergulho, ótimo exercício de literatura.
"Deitada sobre a toalha, os braços cruzados à frente, o queixo sobre o pulso esquerdo, olhava através dos óculos: pernas passavam em toda parte. Ao se distanciarem, deixavam ver as figuras inteiras, os corpos brancos, pretos, vermelhos, dourados. Quando voltavam, em uma espécie de zoom involuntário, era quase um susto: pés cada vez mais próximos, desviando pelos lados, entre vozes e risos que aumentavam e diminuíam bem acima de suas costas, em algum ponto entre ela e o sol. / Sob o fundo azul que emoldurava a manhã, entravam e saiam do seu campo de visão rodas de carrinhos de sorvete empurrados por pés com chinelos de tira; barrados de tecidos coloridos: cangas, toalhas, vestidos de praia; bolas de frescobol desgovernadas. Pranchas de surf repousavam sobre a areia junto a boias, pés de pato. Sons confundiam-se com cheiros: sotaques vendiam redes, milho verde. Buzinas anunciavam picolés, castanhas de caju, queijo coalho." (p. 13) - Trecho de Entre pálpebra e retina de Cristiane Costi e Silva
Já Inês Lempek nos emociona ao descrever com muita sensibilidade as memórias de infância da personagem que precisa cumprir a sua tarefa de recolher os ovos no galinheiro, enfrentando o galo enorme de penas alaranjadas e brilhantes e a sua própria compaixão pela galinha choca que defende os ovos com pequenas bicadas. Neste conto, Os Segredos, presenciamos um momento único e atemporal, nos identificando com esta criança que descobre a importância e simplicidade da vida entre galos e galinhas: "Embaixo do poleiro, uma galinha ruivinha tirava uma soneca. Fiz silêncio. Ela pressentiu minha presença. Abriu os olhos e piou. Eu entendi. Estava choca."
"Meu avô criava galinhas. Essa era uma de suas aventuras com a natureza. Vez em quando aparecia em casa com pintinhos novos. / Também tinha as galinhas d'angola, criadas em separado, que cantavam tô fraca, tô fraca e botavam ovinhos pequenos e pintadinhos. / Eu gostava de ir ao galinheiro. Era uma aventura buscar os ovos, com todos os seus desafios. / Pra chegar até lá, eu andava pelo quintal, que ficava ao lado da oficina de marcenaria do meu avô. No caminho, passava pela pitangueira, pelo limoeiro, por baixo da parreira. O melhor vinha depois: comer araçá no pé e sentir aquele azedinho na boca. / Difícil era passar pelo galo. Eu tinha juízo e consciência de que nós éramos apenas os consumidores e ele, afinal, era o sultão do pedaço: zelava pelo bem da prole e protegia as galinhas – especialmente quando alguma estava choca." (p. 31) - Trecho de Os segredos de Inês Lempek
Em Tormenta, Márcia de Lima Canez conta uma história sensual de infidelidade em uma típica colônia de imigração alemã. A protagonista lembra de um dia de chuva forte no qual cedeu à tentação: "Lembro, lembro, lembro sempre, o mais devagar que posso, para nunca deixar de sentir o que senti, quando a água da chuva caiu forte, tão forte, choveu até pedra, e eu corri e me escondi num galpãozinho baixo, de madeira apodrecida, coberto com umas telhas soltas, onde os vizinhos guardavam ferramentas velhas, às vezes usadas para cortar o mato que crescia demais na beira da sanga." Neste cenário isolado, durante a forte chuva, um encontro irá despertar o desejo da brasileira de pele morena e ohos escuros pelo vizinho alemão, dono da venda local.
"Não respondi, achei que tinha perdido a voz para sempre. Quando ele tocou minha mão, senti meu corpo amolecer tanto que agradeci estar sentada naquela terra já virada barro. Quando tocou minha perna, devagar e depois com força, senti dentro da calcinha encharcada um prazer que nunca tinha sentido. Deixei que passasse as mãos, a língua, me penetrasse, fizesse tudo que teve vontade sem dizer nada, gemendo alto e agradecendo os sons ao redor. Subi no corpo dele, me agarrei no peito de pelos ruivos, fiquei com medo de arranhar aquela pele tão branca com os calos da minha mão, mas prossegui e senti uma, duas, três vezes uma sensação que não conhecia, mas hoje sei o que é. Queria morrer beijando, esfregando, lambendo aquela boca, aquela pele." (pp. 40-1) - Trecho de Tormenta de Márcia de Lima Canez
Sinara Foss tem um livro resenhado por aqui, Plural de fêmeas, inspirado no estilo fantástico e de terror no qual as personagens enfrentam situações de desespero e violência. O conto que destaquei desta coletânea, Fotossíntese, tem uma inspiração maior no surrealismo. Em 1924, André Breton, talvez o maior teórico do movimento, publicou o primeiro Manifesto do Surrealismo, que definiu como "um automatismo psíquico puro mediante o qual se nos propõe exprimir quer verbalmente quer por escrito o funcionamento real do pensamento. Ditado pelo pensamento, fora de todo o controle exercido pela razão, fora de toda a preocupação estética ou moral.", citação que resume bem o estilo de Sinara Foss e das outras "gurias" dessa edição, acho que ainda vamos ouvir falar muito nelas.
"Acordou bem mais tarde com um desconforto ainda maior, algo roçando, áspero, fazendo cócegas, pressionando entre o rosto e o travesseiro. Correu pesadamente para o espelho e não conseguiu conter o grito. Levou as mãos à cabeça e viu no reflexo galhos da mesma planta saindo do outro ouvido. Esse caule era ainda mais forte e vigoroso. Notou também que das narinas começavam a despontar brotos de um verde mais fraco, quase amarelos, como pequenas flores. / Na mesma hora tocou o celular. Era o número da mãe. Seis chamadas não atendidas. Assombrou-se ao pegar o aparelho. Os dedos das mãos e dos pés não eram mais pele, carne, ossos e cartilagem, e sim brotos da planta em que ela se transformara. / Gritou horrorizada, mas nenhum som humano saiu de sua boca, apenas um ciciar de folhas e flores de um verde desmaiado." (p. 68) - Trecho de Fotossíntese de Sinara Foss
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