Manoel de de Barros - Retrato do artista quando coisa
Manoel de Barros (1916-2014) é o nosso eterno mestre da desimportância, um homem com "um senso apurado de irresponsabilidades" que nos ensinou com seus versos a enxergar de um jeito diferente as coisas simples da natureza: "Fui criado no mato e aprendi a gostar das / coisinhas do chão – / Antes que das coisas celestiais. / Pessoas pertencidas de abandono me comovem: / tanto quanto as soberbas coisas ínfimas." Contudo, na busca da palavra certa – ou da despalavra, como ele mesmo diz – e um contínuo exercício de simplificação, o poeta criou um universo muito particular e, por isso mesmo, universal: "Não tenho mais nenhuma ideia sobre o mundo. / Acho um tanto obtuso ter ideias. / Prefiro fazer vadiagem com letras posso ver quanto / é branco o silêncio do orvalho."
Nesta vadiagem com as letras, dá vontade de ficar o tempo todo citando os versos do poeta que acabou descobrindo, ao longo da vida, o valor de ser coisa e ainda muito mais: "chuvas, tardes, ventos, passarinhos...", de saber olhar para baixo: "É um olhar para baixo que eu nasci tendo. / É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo." Sempre em estado de palavra: "Para enxergar as coisas sem feitio é preciso / não saber nada. / É preciso entrar em estado de árvore. / É preciso entrar em estado de palavra. / Só quem está em estado de palavra pode / enxergar as coisas sem feitio." Deixo com vocês alguns poemas deste 14º livro de Manoel de Barros, lançado originalmente em 1998 e dividido em duas partes: "Retrato do artista quando coisa" e "Biografia do orvalho".
Poema 14 - Retrato do artista quando coisa
(Manoel de Barros)
Remexo com um pedacinho de arame nas
minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
entre conchas, osso de arara, pedaços de pote,
sabugos, asas de caçarolas etc.
E tem um carrinho de bruços no meio do
terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a
puxar o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras
no seu caminhão.
O menino também puxava, nos becos de sua
aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino é hoje um homem douto que trata
com física quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo
umas latas tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem
douto encomendou uma árvore torta –
Para caber nos seus passarinhos.
De tarde os passarinhos fazem árvore nele.
Poema 16 - Retrato do artista quando coisa
(Manoel de Barros)
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.
Poema 9 - Biografia do orvalho
(Manoel de Barros)
Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de belezas for
esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que grita de meu olho não
for mais escutado.
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
– Dormir, talvez chorar.
Poema 11 - Biografia do orvalho
(Manoel de Barros)
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
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