Shirley Jackson - Sempre vivemos no castelo

Literatura norte-americana
Shirley Jackson - Sempre vivemos no castelo - Editora Alfaguara - 176 Páginas - Tradução de Débora Landsberg - Capa: Elisa vonRandow - Imagem de capa: Youth de Will Barnet - Lançamento 2022.

Shirley Jackson (1916-1965) ficou conhecida por seu conto A loteria (ler a resenha de A loteria e outros contos no Mundo de K), que se tornou um clássico do gênero de horror. Contudo, é neste seu último romance, publicado originalmente em 1962, que encontramos uma das anti-heroínas mais misteriosas e bem construídas da literatura, assim como um dos melhores parágrafos de abertura já escritos: "Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que se tivesse sorte teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho. Gosto da minha irmã Constance, e de Richard Plantagenet, e de Amanita phalloides, o cogumelo chapéu-da-morte. Todo o resto da minha família morreu."

Neste parágrafo inicial, fica claro que a protagonista-narradora Mary Katherine, ou Merricat como é apelidada, vive em um universo muito particular no qual, apesar da fase final da adolescência, ainda encontra espaço para a mágica, particularmente sobre temas obscuros: "se tivesse sorte teria nascido lobisomem"; a importância da irmã mais velha Constance, citada por duas vezes, em contraponto a um personagem da história inglesa do século XV, Richard Plantagenet, Duque de York; uma lista de coisas das quais gosta e não gosta, incluindo entre alguns itens banais o interesse por uma espécie venenosa de cogumelo que pode ser fatal, para concluir com uma informação importante e que destoa de todo o resto, um ponto final perfeito que captura o leitor: "Todo o resto da minha família morreu".

"Da última vez que dei uma olhada nos livros da biblioteca que estavam na prateleira da cozinha, o prazo deles já estava mais de cinco meses vencido, e me perguntei se eu escolheria diferente caso soubesse que seriam os últimos livros, aqueles que ficariam para sempre na prateleira da nossa cozinha. Raramente mudávamos as coisas de lugar: os Blackwood nunca foram uma família muito ativa ou inquieta. Trocávamos os objetos transitórios de pequenas superfícies, os livros, as flores e as colheres, mas embaixo deles sempre tivemos uma base sólida de objetos estáveis. Sempre devolvíamos as coisas ao seu lugar. Tirávamos o pó e varríamos debaixo das mesas e cadeiras e camas, dos retratos e tapetes e luminárias, mas os deixávamos no mesmo lugar; as caixinhas em padrão tartaruga na penteadeira da nossa mãe nunca se mexiam mais que uma fração de centímetro. Os Blackwood sempre moraram na nossa casa e mantiveram suas coisas em ordem; assim que a nova esposa de um Blackwood se mudava, achava-se um lugar para seus pertences, e então nossa casa foi ficando mais pesada com as camadas de bens dos Blackwood, elas a mantinham firme contra o mundo." (p. 7)

Shirley Jackson desenvolve lentamente o tema principal que é o isolamento das duas irmãs Blackwood, vivendo na antiga mansão da família, acompanhadas apenas do gato Jonas e do tio Julian que se tornou inválido após o evento que culminou com a morte da maioria dos sete integrantes da família, tragédia que será desenvolvida e explicada lentamente ao longo do romance, à princípio por meio de algumas pistas, por exemplo: "O pessoal do vilarejo sempre nos odiou", como informado nas primeiras páginas, em meio às descrições da região local. De fato, a autora mantém a tensão narrativa sob controle utilizando os ingênuos comentários da protagonista e, ao mesmo tempo, deixando claro que trata-se de uma narradora nada confiável, como logo descobriremos.

"Nas manhãs de domingo eu examinava minhas salvaguardas, a caixa com moedas de dólares de prata que eu havia enterrado perto do riacho, e a boneca enterrada no campo, e o lvro pregado na árvore do pinheiral; contanto que estivessem onde eu os colocara, nada poderia vir para nos fazer mal. Eu sempre enterrei coisas, desde quando era pequena; lembro que uma vez dividi o campo em quatro partes e enterrei algo em cada uma delas para fazer a grama crescer mais à medida que eu crescesse, assim sempre conseguiria me esconder lá. Uma vez enterrei seis bolinhas de gude azuis no leito do riacho para que o rio mais além secasse. 'Aqui está um tesouro para você enterrar', Constance me dizia quando eu era pequena, me dando uma moedinha ou uma fita colorida; enterrei todos os meus dentes de leite à medida que foram caindo um a um, e quem sabe um dia não cresceriam na forma de dragões. Nosso terreno inteiro era adubado com os tesouros que eu havia enterrado, densamente povoado logo abaixo da superfície pelas minhas bolas de gude e meus dentes e minhas pedras coloridas, todas talvez transformadas em pedras preciosas a esta altura, aglomeradas sob o solo em uma rede potente e firme que nunca se afrouxou, mas resistiu para nos proteger." (p. 54)

O equilíbrio na mansão dos Blackwood está para terminar com a chegada do inconveniente primo Charles que vem para ficar. Mary Katherine, ou Merricat, fará tudo ao seu alcance para impedir a aproximação de Charles e Constance, aparentemente uma nova tragédia anunciada se aproxima. Tentei escrever esta resenha sem revelar muitos dos detalhes da trama e preservar o prazer da leitura inicial, mas o que essencialmente torna esta obra um clássico é a habilidade da autora em lidar com o isolamento, em mostrar como o comportamento bizarro dos personagens é, na verdade, tão profundamente humano, um livro imperdível.

"Deve ter sido neste exato minuto que ele achou a entrada e começou a subir a rampa de carros, correndo sob a chuva, porque só me restava um ou dois minutos até vê-lo. Poderia ter usado esse minuto para tantas coisas: poderia ter avisado a Constance, de alguma forma, ou poderia ter pensado em uma palavra mágica nova, mais segura, ou poderia ter empurrado a mesa contra a porta da cozinha; na verdade, brinquei com a minha colher e olhei para Jonas, e quando Costance se arrepiou eu disse, 'vou pegar o suéter'. Foi isso o que me levou ao hall no instante em que em que ele subia os degraus. Eu o vi pela janela da sala de jantar e por um instante, gelada, fui incapaz de respirar. Sabia que a porta da frente estava trancada; pensei primeiro nisso. 'Constance', falei mansamente, sem me mexer, ' tem alguém lá fora. A porta da cozinha, rápido.' Imaginei que tivesse me esutado porque ouvi seus movimentos na cozinha, mas tio Julian tinha acabado de chamar e ela foi vê-lo, deixando o coração da nossa casa desprotegido. Corri até a porta da frente e me encostei nela e ouvi os passos lá fora. Ele bateu, primeiro baixinho e depois com firmeza, e me joguei contra a porta, sentindo as batidas me atingirwm, consciente da proximidade dele. Já sabia que ele era um dos ruins; vira seu rosto por um instante e ele era um dos ruins, que rodeiam e rodeiam a casa, tentando entrar, olhando pelas janelas, puxando e remexendo e roubando lembrancinhas." (p. 71)

Literatura norte-americana
Sobre a autora: Shirley Jackson nasceu em São Francisco, Califórnia, em 1916, e faleceu em 1965. Uma das principais autoras americanas do século XX, conhecida principalmente por suas obras de horror e mistério. Durante suas duas décadas de carreira, ela escreveu seis romances, dois livros de memórias e vários contos. Influenciou escritores como Stephen King, Donna Tartt, Neil Gaiman e Richard Matheson. Sua obra é leitura obrigatória em diversas escolas dos Estados Unidos, e seu trabalho é aclamado pelo público e pela crítica. Sempre vivemos no castelo foi lançado originalmente em 1962 e é considerado por muitos críticos como a obra-prima da autora.

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