Shirley Jackson - A loteria e outros contos
Apesar de ter escrito romances, livros de memória, novelas e narrativas curtas, a carreira de Shirley Jackson (1916-1965) ficou marcada – para o bem e para o mal, como ocorre geralmente nesses casos – por um único conto, A loteria, que consta obrigatoriamente em qualquer seleção de grandes contos norte-americanos do século XX, sendo considerado um marco moderno na literatura de terror e influenciado alguns famosos autores contemporâneos do gênero. A narrativa, publicada originalmente em 1948 pela New Yorker, descreve uma estranha tradição anual em uma pequena comunidade fictícia no interior dos Estados Unidos, que provocou uma forte reação nos leitores mais conservadores na época por meio de várias cartas de reclamação e até mesmo o cancelamento de assinaturas, devido à crueldade e brutalidade sugeridas no desfecho.
No entanto, esta coletânea não se limita a um único gênero, muito pelo contrário. Lidando com o aspecto psicológico de suas personagens, que representam o universo bastante limitado de mães e donas de casa da classe média norte-americana na segunda metade do século XX, a autora – ela própria tendo sido uma típica esposa do interior e dona de casa com quatro filhos – apresenta algumas situações do cotidiano que se tornam inusitadas e desconfortáveis, escapando ao controle. Além das questões feministas (A moça do Village, É claro, Elizabeth, Homens e seus sapatos grandes), também são abordados outros temas sensíveis como o racismo (Jardim florido, Primeiro você, meu caro Alphonse), o confronto entre ingenuidade infantil e instinto diabólico (A bruxa, Charles) e, é claro, o suspense psicológico e horror em um estilo que se convencionou chamar de gótico (A renegada, A loteria).
"Havia um policial na esquina, e ela ponderou, Por que não procuro a polícia? A gente recorre à polícia quando alguém some. E em seguida pensou, Que boba eu ia parecer. Teve um rápido vislumbre de si mesma em uma delegacia, dizendo, 'Sim, íamos nos casar hoje, mas ele não apareceu', e os policiais, três ou quatro ao seu redor, escutando, olhando para ela, para o vestido estampado, para a maquiagem luminosa demais, sorrindo uns para os outros. Não poderia lhes contar mais nada além disso, não poderia dizer, 'Sim, parece uma bobagem, não parece, eu toda arrumada tentando achar o rapaz que prometeu se casar comigo, mas e tudo o que vocês não sabem? Eu tenho mais que isso, mais do que vocês enxergam: talento, talvez, e certo tipo de humor, e sou uma dama e tenho orgulho e afeto e delicadeza e uma visão clara da vida que poderia deixar um homem satisfeito e produtivo e feliz; existe mais do que vocês pensam ao olhar para mim'. / A polícia era obviamente uma impossibilidade, para não falar de Jamie e do que poderia pensar ao saber que ela pusera a polícia atrás dele. 'Não, não', ela disse em voz alta, apertando o passo, e alguém que passava parou e olhou para as costas dela." (pp. 25-6) - Trecho de O amante diabo
Uma das características mais interessantes de Shirley Jackson é saber como descrever os piores pesadelos; não aqueles povoados por monstros, pois estes identificamos logo de início como pesadelos, mas sim aqueles que reconhecemos como parte do nosso próprio cotidiano, nos envolvendo em uma sensação de afogamento na qual não percebemos se chegamos ao fundo ou à superfície. É o caso de algumas crises de suas personagens descritas de forma magistral, como o surto de pânico da protagonista em Estátua de Sal durante uma estadia em Nova York ou os pesadelos induzidos por anestésicos na personagem após uma visita ao dentista em O dente. A leitura de A loteria e outros contos é mesmo uma experiência perturbadora que não consegue ser facilmente explicada ou resenhada.
"Não faz sentido me preocupar, disse a si mesma outra vez, como se fosse um feitiço contra bruxas, e se levantou, achou o casaco e o chapéu e os vestiu. Vou só comprar cigarro e um papel de carta, ela pensou, vou só até a esquina. Foi dominada pelo pânico no elevador: ele descia rápido demais, e quando pisou no saguão, só as pessoas paradas a impediram de correr. Do jeito que estava, ela saiu apressada do prédio e ganhou a rua. Por um instante, hesitou, querendo voltar. Os carros passavam tão ligeiros, as pessoas apressadas como sempre, mas o pânico do elevador por fim a impeliu adiante. Foi até a esquina e, seguindo os que passavam voando à sua frente, desceu correndo da calçada e ouviu uma buzina quase em cima dela e um grito de alguém às suas costas, além do barulho de freios. Seguiu em frente às cegas e chegou ao outro lado, onde parou e olhou ao redor. O caminhão seguiu o trajeto previsto, dobrando a rua, e as pessoas passavam a seu lado, afastando-se para dar a volta nela, que estava plantada na calçada." (p. 212) - Trecho de Estátua de sal
O grande conto do livro é mesmo A loteria, um verdadeiro clássico na forma como a tensão narrativa é lentamente construída a partir de um inocente cenário rural: uma manhã clara e ensolarada em um pequeno vilarejo, crianças em recesso de verão brincam recolhendo pedras e formando uma enorme pilha em um canto da praça, logo começam a chegar os fazendeiros falando de plantio e chuva, tratores e impostos, assim como as mulheres com vestidos e casacos desbotados que usavam para ficar em casa. O leitor percebe que algo muito estranho e brutal está sendo preparado e prestes a acontecer quando tem início um sorteio no qual ninguém espera realmente ser contemplado.
"A parafernália original da loteria havia se perdido fazia muito tempo, e a caixa preta que agora repousava sobre o banco tinha sido posta em uso antes mesmo de o Velho Warner, o homem mais velho da cidade, nascer. O sr. Summers volta e meia falava com os aldeãos sobre a fabricação de uma caixa nova, mas ninguém queria comprometer nem mesmo a tradição representada pela caixa preta. Havia uma história de que a caixa atual fora feita com alguns pedaços da caixa que a precedera, aquela que fora montada quando as primeiras pessoas se instalaram ali para formar um vilarejo. Todo ano, após a loteria, o sr. Summers começava a falar outra vez sobre uma caixa nova, mas todo ano deixavam que o assunto morresse sem que nada fosse feito. A caixa preta ficava mais desgastada a cada ano: a essa altura já não era mais completamente preta, mas bastante lascada em um dos lados, exibindo a cor original da madeira, e em alguns pontos estava desbotada ou manchada." (pp. 247-8) - Trecho de A loteria
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