Carla Bessa - Todas uma

Literatura brasileira contemporânea
Carla Bessa - Todas uma - Editora Confraria do Vento - 108 Páginas - Projeto gráfico: Pranayama Design - Lançamento: 2022.

O mais recente lançamento de Carla Bessa lida com um tema polêmico ao questionar até que ponto o desejo de ser mãe é uma escolha individual ou institucionalizada pela sociedade e mesmo pela religião, fazendo com que, em alguns casos, as mulheres amem seus filhos e detestem ser mãesA autora desenvolve narrativas interligadas, misturando os conceitos de conto e novela, criando personagens que compartilham a sensação de invisibilidade a partir do momento em que se tornam esposas e mães, precisando superar as pressões do desempenho profissional e ainda tendo que manter a beleza e a sexualidade. A opção pela polifonia explora os fragmentos de uma mesma mulher que precisou se dividir para sobreviver, a estratégia do livro é de unir essas partes em uma única história como sugerido no título: todas e uma.

Lívia percebe um leve desbotamento da sua imagem no espelho, um desaparecimento gradual que aumenta ao longo dos dias, semanas, meses e anos. Ela se acostuma com "a ideia de continuar vivendo, apesar de morta". Já Rosa é uma mulher bonita e inteligente com um casamento estável e dois filhos lindos, um menino e uma menina. No entanto, enlouquece no dia do seu aniversário de quarenta anos. Medeia decide partir durante a madrugada, não sabe para onde ir, sempre obedeceu à vontade alheia: pais, marido e filhos. Outra personagem não nomeada dá à luz o filho sozinha em casa, envolvida pelas dores do parto pensa na limitação de suas escolhas ao longo da vida: "nunca considerei a opção de não ter filhos, mas também não foi algo que deliberei, simplesmente me pareceu a consequência natural de ser mulher."

"No domingo em que eu morri, estava chovendo. Ou, para ser mais exata, estava garoando. Aquele chuvisco constante, acompanhado de um leve nevoeiro, fenômeno meteorológico que já foi típico da minha cidade, mas fazia tempo não ocorria. As mudanças climáticas, dizem. Era ainda madrugada e eu ouvi os pingos finos feito agulhas batendo na vidraça, ouvi os braços alvoroçados do vento revolvendo as folhas na calçada, e soube de imediato que alguma coisa havia acontecido comigo. Olhei para o lado e vi as costas largas e peludas de Eduardo, deitado sobre o flanco direito com a mão espalmada na parede. O meu marido costuma dormir assim, como se precisasse segurar a casa até no sono. Eu me sentei na borda da cama e olhei atentamente para as minhas pernas magras, já meio murchas e um tanto amarelecidas, depois para os pés nus com os dedos finíssimos e rígidos contra a tábua corrida. Pernas de galinha. Eu sei que, exatamente naquele lugar no chão, a madeira solta estala quando se pisa sobre ela e deslizei o corpo meio metro para a esquerda. Não queria fazer barulho e acordar o homem. Por conta de um eterno esporão de calcâneo, a perna cedeu num primeiro instante, mas já conheço essa mazela há tanto tempo e segui mancando para me olhar no espelho." (pp. 11-12)

Carla Bessa oscila entre a prosa e a poesia, como quando dá voz a uma personagem que funciona como elemento conector entre as outras, Sueli, a empregada que carrega um outro tipo de invisibilidade, neste caso social: "Nos abismos das gentes / já tinha olhado / outras vezes, a Suely. / Porque o que ninguém sabia. / o que cá dentro ela guardava, no peito, era / um dom e uma dor: a vidência. / Uma virtude e ao mesmo tempo / um infortúnio, já que quem muito vê, / muito sofre. / E, por isso, Suely matutava mais do que cabia / a uma mulher / como ela, no seu entender. Mas Deus certo escreve por linhas tortas, Ele / põe a Sua mão sobre a cabeça de umas / e não de outras, e eu fui escolhida para ser / uma das acarinhadas. E vi  e vejo que / aquela que constrói casa muita svezes fica / presa nela, / e a que / sem teto está também / não é livre, ela não / tem para onde ir. / O problema é viver sem temperança!"

"Da porta, Rosa foi para o quarto das crianças para colocá-las na cama, mas os filhos já estavam deitados com os dentes devidamente escovados, esperando por ela, como faziam todas as noites religiosamente àquele horário. Eram crianças exemplares. Quando a mãe surgiu à porta, eles bem que notaram algo diferente, mas não disseram nada. Rosa se aproximou, puxou o banquinho que estava num canto para o meio das duas camas e segurou as mãozinhas de um e outro, acariciando os bracinhos num ritual repetido noite após noite e que era como o lavramento silencioso de uma apólice de seguros contra catástrofes, a garantia de que a terra lá fora podia tremer, o mundo podia cair, mas, ali, estariam sãos e salvos. Em seguida, ela pegou o livro com histórias infantis já escolhido pela criança que estava na vez e leu uma história adequada para a faixa etária dos filhos. Por fim, cantou uma canção de ninar, acariciando as cabecinhas em porções e intensidade iguais. Os olhinhos já estavam semicerrados quando ela deu um beijo numa testa e mais um beijo na outra testa e disse: – Vão para o inferno!" (pp. 20-21)

A linda capa e o projeto gráfico, como um todo, seguem o padrão vermelho apresentando a sugestiva imagem de uma romã aberta e suas sementes como uma representação da vulnerabilidade do corpo feminino. Certamente muito já foi dito sobre a opressão do patriarcado e a invisibilidade das mulheres, mas o livro de Carla Bessa encontra novas formas de resgatar este assunto – ainda muito longe de ser resolvido –, com originalidade e sensibilidade.

"Um líquido quente escorreu pelas minhas pernas, gotejou sobre o assoalho. Suando, comecei a resfolegar feito uma cadela. Amaldiçoei as sombras. Será que vamos morrer aqui? Vamos definhar olhando para o amarelo nojento da parede? Atravessada pelo que queria expelir, senti uma cabeça entre as minhas pernas. Toquei o crânio estreito com os dedos, apalpei os ossinhos pontudos dos ombros. Apoiada sobre os cotovelos, comecei a pressionar ao mesmo tempo que puxava o pequeno corpo em direção aos meus joelhos. Vi merda saindo junto com água e sangue, vai ficar uma mancha vermelha no assoalho, ainda pensei. Um odor ruim, azedo, subiu às minhas narinas e lembrou-me o cheiro de uma mendiga que se sentou uma vez ao meu lado no ônibus. A última contração quis me romper, crispei a boca, as sombras seguraram meu fôlego. Era o meu corpo ou a terra que se abria? / Antes de morrer, revi a imagem do deus grego devorando o próprio filho e conluí, rindo agora alto: se Cronos fosse uma deusa, seria o filho que a devoraria." (p. 42)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Carla Bessa é atriz, tradutora e escritora. Traduziu importantes nomes da literatura contemporânea alemã para editoras brasileiras e publicou os livros de contos Aí eu fiquei sem esse filho (2017) e Urubus (2019) e a novela Minha Murilo (2021). Urubus, publicado pela Confraria do Vento, recebeu o Prêmio Jabuti 2020 e foi premiado com o 2° lugar no Prêmio Biblioteca Nacional 2020, sendo traduzido para o alemão e publicado pela editora Transit Verlag. Aí eu fiquei sem esse filho foi lançado na Grécia pela Skarifima Editions.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Todas uma de Carla Bessa

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