Nathalie Lourenço - Tudo meio horrível
O título do terceiro livro de contos de Nathalie Lourenço, Tudo meio horrível, nos oferece uma boa indicação sobre o seu estilo criativo, bem-humorado e carregado de ironia, ao trabalhar com personagens caricatos em situações "normais" do cotidiano, porém colocando-os sempre na iminência de alguma transformação perturbadora que provoca uma guinada na narrativa, até então leve e despretensiosa. Essa capacidade de lidar com o tragicômico sempre presente em nossas vidas, no curto espaço de manobra dos textos velozes, controlando o exato momento da revelação que irá surpreender o leitor desprevinido – fazendo rir ou chorar (ou possivelmente as duas coisas) – é a característica que melhor diferencia o trabalho da jovem autora.
Escrevendo em primeira ou terceira pessoa, Nathalie aproxima o leitor do universo bizarrro desses personagens, todos autênticos perdedores e, por isso mesmo, carismáticos. É o caso da colegial esperta sem tempo para estudar devido às postagens no seu Vlog sobre maquiagem, tentando subornar a professora para passar de ano; um homem que relembra passagens do casamento que chegou ao final por meio de fragmentos de antigas fitas de VHS, lembrando da ex-mulher e da filha (ex-filha?); um grupo de amigos em um final de noite típico às seis da manhã no Fritos Lanches; um motoboy explorado que não pode atrasar ou terá que pagar a entrega do próprio bolso; a obsessão de Vânia em emagrecer enquanto vende antigas jóias de família, buscando "homens-sanduíche com COMPRO OURO escrito frente e verso".
"Era uma grande declaração de amor, mas eu não tinha nada a ver com isso. A culpa era da internet, que transformou o mundo numa cidade pequena, daquelas com fanfarra e coreto, onde meu irmão podia arranjar uma Namorada Turca (turca de verdade, turca da Turquia) como quem se apaixona por uma garota de bandana no trem. Ele poderia entrar no parperfeito.com, ou beber umas a mais e beijar uma colega de trabalho ou cruzar olhares num bar com qualquer uma que morasse a um raio de 10 quilômetros. Não. Aquele querubim safado que a gente chama de cupido não liga a mínima para a praticidade. Flechou o pobre Jairo em um fórum de internet sobre miniaturas. O resultado é esse que vocês estão vendo. Eu, na ponte que cruza o estreito de Bósforo, com um ridículo embrulho de fita rosa e uma missão. Tudo porque nasci do mesmo útero que o último dos românticos." (p.31) - Trecho do conto A namorada turca
A maioria dos contos reflete de alguma forma a solidão nos grandes centros urbanos e aquela gente simples que persegue algum resto de felicidade possível, enquanto tenta sobreviver. É muito fácil identificar essas pessoas e situações ao nosso redor e a reprodução dessas vozes é sempre muito convincente, como a nova profissional de RH que precisa aprender o processo de demitir alguém, auxiliada por um colega de trabalho: "Há os que chegam resignados, os contidos, os furiosos, os derramadores de lágrimas." ou a experiência de um erotismo forçado em Dois dedos molhados: "Não se masturbava assim, tão seguido e tão bem desde a adolescência, quando o casting das fantasias incluía todo tipo de ator e meninos mais velhos da escola."
"Ela achava Daniel meio feioso, esquisito até, então porque ele insistia em aparecer na sua cabeça sempre que a mão direita se esgueirava calcinha adentro? O colega era da área de RH, tinha cara meio de havaiano, olhos meio puxados, alto e quase quadrado de tão maciço, com peitinhos que ficavam marcados de suor nos dias quentes e lábios grossos demais para ficarem bem em um homem. E, pra deixar Lili ainda mais culpada, ele fissurado na esposa. Já fazia alguns meses que os dois descobriram que moravam em bairros próximos e foi assim que as caronas começaram. O trânsito de São Paulo, sempre horrível, fazia o papo se alongar e assim ela sabia todas as pequenas coisas que ele fazia por Giovanna (pode me deixar na farmácia? Gi está meio mal), ajudava nas ideias de presente (mas eu já dei brinco ano passado), palpitava nos planos para o fim de semana (ela adorou o restaurante que você indicou) e até escutava parte das conversas quando, no carro dela, eles se falavam ao telefone." (p. 89) - Trecho do conto Dois dedos molhados
Adorei o estilo de Nathalie Lourenço, um livro que deixa saudades e vontade de conhecer mais do seu trabalho, acho que ainda vamos ouvir falar bastante dela nos próximos anos. Deixo vocês com um trecho de Capa de Botijão, um conto hilário na voz de um motoboy e que, contudo, assim como outras narrativas desta coletânea apesar de provocar boas gargalhadas, deixa um gostinho amargo quando pensamos que isso pode estar acontecendo exatamente assim em algum lugar da nossa cidade.
"A próxima entrega é pro outro lado, mas quem resiste a voltar por uma rua de mão dupla? O caminho conhecido me acalma. Silencio a mulher irritante do app, toda hora querendo que eu vá pra outro lugar. Poucos metros depois, freio com tudo, boto o pé no chão. Um energúmeno resolveu fazer balão, aqui, no meio da quadra. Quase que me deita a moto. Espio o vidro insufilmado do carro, não dá para ver direito a velha, só pode ser uma velha, sempre é. Pode anotar. Se te fodeu no trânsito é porque põe capa no botijão de gás. Ainda levou uma eternidade para manobrar, puta que lhe pariu. Cada minuto que passa aumenta a chance de eu ter que arcar com o preço da esfiha do cliente. Sua esfiha em 28 minutos ou seu dinheiro de volta. Bonito, né? O serviço da lanchonete? Pra sua comida chegar rapidinho? Quem paga essa merda sou eu. Então vai, minha senhora, tira esta porra metálica do meio da rua, que a caixa de entrega tava pesada, filho da puta deve ter pedido beirute com tudo dentro, nem pra pedir coisa barata. O jeito é subir na calçada, arrancar por ali mesmo, desviar do poste, cair de volta no asfalto, Obrigado, Jesus. Mais sete quadras pra próxima entrega. [...]" (pp. 101-2) - Trecho do conto Capa de botijão
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