Natalia Ginzburg - A cidade e a casa
Natalia Ginzburg (1916-1991) criou neste romance um efeito polifônico único ao reunir as cartas de um grupo de amigos e múlltiplos pontos de vista – nem sempre confiáveis – de acordo com as personalidades de cada personagem. De fato, o leitor vai construindo aos poucos a sua versão da história ao organizar e validar os fragmentos narrativos, do particular para o geral, em uma aproximação já sugerida no título. A autora explica o processo em entrevista de 1984, reproduzida nesta edição: "Tinha um grande desejo de escrever em primeira pessoa, mas também em terceira. Queria os privilégios de ambas as formas. Queria um 'eu' que correspondesse a um 'ele'; uma primeira pessoa, porém, com muitas facetas, múltiplas. As cartas são isso. em vez de um só 'eu' que narra os outros e si mesmo, muitos 'eus' que se narram, E a 'terceira pessoa' está salva de algum modo."
Lucrezia e Piero vivem em uma casa de campo chamada As margaridas, ponto de encontro dos personagens, como se os mesmos constituíssem uma família. Um dos amigos do casal é Giuseppe, um solitário jornalista de meia-idade que vende a sua casa em Roma para viver com o irmão em Princeton, ele teve uma relação amorosa com Lucrezia no passado, consentida por Piero. A dissolução do núcleo de amigos que tem início com a partida de Giuseppe, assim como outros desencontros, representa a desagregação da família, por sinal um tema recorrente na obra de Ginzburg que costuma escrever sobre as relações familiares e refletir sobre a condição humana, novamente utilizando uma abordagem pessoal para chegar no geral e, finalmente, falar sobre "a única coisa que é indispensável dizer, isto é, como as pessoas encaram e suportam a dor e a felicidade, a miséria, o medo e a morte".
"De manhã, assim que acordo, me ponho a pensar em tudo que estou prestes a deixar, em tudo que me fará uma forte falta quando estiver nos Estados Unidos. Deixo você. Deixo os teus filhos, Piero, a casa que vocês chamam de As Margaridas, sabe-se lá o por quê desse nome, já que não se vê nem meia margarida por aí. Deixo aqueles poucos amigos que sempre encontrava na tua casa, Serena, Egisto, Albina, com quem passeávamos pelo bosque e jogávamos escopa à noite. Usei o imperfeito, mas foi um erro, porque vocês continuarão passeando e jogando cartas, e o imperfeito se refere somente a mim. Deixo minha prima Roberta, mulher admirável, dedicada a todos, grosseira, abelhuda e barulhenta. Deixo a minha casa, onde moro há mais de vinte anos. A poltrona de corino, sempre com uma manta por cima e onde me sento de manhã assim que acordo. A cama com a cabeceira de madeira, onde me enfio à noite. A janela da cozinha, com vista para o jardim das freiras. As janelas da sala, com vista para a Via Nazario Sauro. A banca de jornais da esquina, o restaurante Mariuccia por onde às vezes passo para comer, a loja de artigos esportivos e o café Esperia. Deixo você. Deixo o teu rosto comprido e pálido, os teus olhos verdes, os teus cachos pretos, os teus lábios fartos. Não fazemos amor há três anos, mas sempre que te vejo tenho a impressão de que fizemos na véspera. E, longe disso, nunca mais faremos. [...]" - Carta de Giuseppe a Lucrezia (pp. 12-3)
Da relação de Giuseppe com Lucrezia restou um filho, Graziano, que ele não reconhece, assim como tem problemas com o filho do próprio casamento, Alberico, de quem nunca se aproximou: "O meu único filho é Alberico. Preferia outro, diferente. Mas isso certamente vale para ele também. Sabe-se lá quantas vezes não pensou que preferiria ter outro pai. Quando estamos juntos, fazemos um tremendo esforço para dizer até as coisas mais simples." O relacionamento difícil entre Giuseppe e Alberico será explorado como um dos pontos centrais do romance, por meio das cartas com os amigos em comum, Albina, Serena, Egisto, Ignazio Fegiz e Alberta, ao longo de quatro anos.
"Como você é estranho. Não nos falamos direito há tanto tempo e do nada você me escreve uma longa carta. Houve um período em que escrevemos algumas cartas, eu e você, mas não muitas, tampouco longas, e é um período já bastante distante, quatro, cinco anos atrás. Depois não nos escrevemos mais e nem mesmo falávamos grandes coisas. Por tantas vezes nesses últimos anos ficamos sozinhos, eu e você, por tantas vezes fizemos longos passeios pelos bosques, mas você não dizia mais do que como vai e o que anda fazendo, e eu também. [...] Queria deixar Piero e viver com você. Teria sido um erro, mas eu não sabia. Teria sido um erro porque já estávamos cansados, você de mim e eu de você. Mas eu não sabia, não tinha entendido ainda. Você me disse que não deveria deixar Piero, que não era preciso sequer pensar nisso. Disse que as crianças sofreriam. Eu disse que as levaria comigo e não sofreriam tanto assim, Piero as veria com bastante frequência. Essa casa onde você mora é suficientemente grande e com alguma astúcia todos nós caberíamos. Então você ficou muito amedrontado. Eu li o medo na tua cara. Provavelmente viu a tua casa transformada num acampamento. Não consigo expressar como aquele teu medo me ofendeu. Você disse que não se sentia capaz de ser um pai para as crianças. Não se sentia capaz de sustentar o papel de pai. A tua habitual fixação. [...]" - Carta de Lucrezia a Giuseppe (pp. 27-8)
Enquanto Giuseppe é dono de uma personalidade contida, não suporta hóspedes, fugindo de um vínculo sentimental fixo, seja com outras mulheres ou mesmo com o(s) filho(s), Lucrezia é uma mulher que não resiste às paixões tendo vários casos, admitidos pelo tolerante marido Piero, em uma espécie de relacionamento aberto. O posfácio de Iara Machado Pinheiro resume bem a trajetória das decisões impulsivas de Lucrezia: "Com as palavras de Lucrezia, assistimos ao curso de uma paixão; o arrebatamento inicial, a suspensão dos julgamentos, os movimentos impulsivos, o estranhamento decorrente da adequação do sentimento tão forte ao curso cotidiano, os desencontros e a desilusão do momento que força a constatar que 'não existia mais caminhos'".
"Vou me casar com Nino Mazzeta. Ele fabrica móveis antigos. A fábrica, a loja e também a casa onde mora ficam num pátio atrás da minha casa. Os móveis são bem-feitos, porém não parecem antigos, são brilhosos e têm ar de novo. Nino Mazzeta é viúvo e tem um filho de nove anos. O filho vai mal na escola e vem aqui para fazer o dever de casa. Nino Mazzeta trabalha muito, porém não é rico, e está pagando pela loja com notas promissórias. / Vou me casar com ele pelas seguintes razões, as quais eu examinei atentamente uma por uma. Porque gostaria de ter filhos. Porque já tenho trinta e três anos. Para deixar meu pai contente. Porque poderei continuar mantendo a minha casa em ordem até minhas irmãs crescerem, dado que apenas o pátio separa a minha casa da de Nino Mazzeta. Porque nunca passou pela cabeça de ninguém casar comigo e pela de Nino Mazzeta sim. Porque é uma boa pessoa. Sempre que o meu pai precisou pedir dinheiro, ele deu. Quando meu irmão pediu dinheiro emprestado, ele deu e nunca mais viu a cor desse dinheiro, mas não se prendeu a isso e continuou vindo em casa, de tempos em tempos, à noite depois do jantar, para jogar escopa com o meu pai e conversar, e conversar com o meu pai não é nada simples, é necessário repetir a mesma coisa dez vezes. Porque sou pobre. Quando me casar não serei rica mas serei menos pobre. Porque aqui em Luco a vida é pesada e acho, posso estar enganada, que casada será mais leve." - Carta de Albina a Egisto (pp. 173-4)
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