Manoel de Barros - Gramática expositiva do chão
Este é quinto livro de poemas de Manoel de Barros (1916-2014), o nosso grande mestre da desimportância, como costumo nomeá-lo, um homem que tinha um jeito diferente de ver o mundo a partir de um talento nato para enxergar as coisas simples da natureza. O prefácio da escritora Clarice Freire define muito bem a essência da poesia de Manoel de Barros: "santuário das coisas invisíveis", ou ainda mais certeira quando afirma: "Mais fácil ver brilho numa estrela do que em caracol. Mas há brilho nos dois. Um é quente e explosivo, o outro se arrasta como um cometa que não tem pressa. O caracol é mais antes que depois, por isso carrega a calma que não se entende longe do solo."
I. PROTOCOLO VEGETAL
1.
Trata de episódio que veio a possibilitar a descoberta de um caderno de poemas
Prenderam na rua um homem que entrara na prática do limo
lista dos objetos apreendidos no armário gavetas buracos de parede, pela ordem: 3 bobinas enferrujadas 1 rolo de barbante 8 armações de guarda-chuva 1 boi de pau 1 lavadeira renga de zinco (escultura inacabada) 1 rosto de boneca – metade carbonizado – onde se achava pregado um caracol com a sua semente viva 3 correntes de latão 1 caixa de papelão contendo pregos ruelas zíperes e diversas cascas de cigarras estouradas no verão 1 caneco de beber água 1 boneco de pano de 50 centímetros de altura com inscrições nas costas "O FANTASMA DE OLHOS COSTURADOS" 2 senhoras da zona (esculturas em mangue) 29 folhas de caderno com escritos variados sob os títulos abaixo:
de São Francisco de Assis
b - protocolo vegetal
c - retrato do artista quando coisa
d - a criatura sem o criador
e - você é um homem ou um abridor de lata?
e mais os seguintes pertences de uso pessoal:
o pneu o pente
o chapéu a muleta
o relógio de pulso
a caneta o suspensório
o capote a bicicleta
o garfo a corda de enforcar
o livro maldito a máquina
o amuleto o bilboquê
o abridor de lata o escapulário
o anel o travesseiro
o sapo seco a bengala
o sabugo o botão
o menino tocador de urubu
o retrato da esposa na jaula
e a tela
5.
Antissalmo por um desherói
a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão
seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore
Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas
II. O HOMEM DE LATA
O homem de lata
arboriza por dois buracos
no rosto
O homem de lata
é armado de pregos
e tem natureza de enguia
O homem de lata
está na boca de espera
de enferrujar
O homem de lata
se relva nos cantos
e morre de não ter um pássaro
em seus joelhos
O homem de lata
traz para a terra
o que seu avô
era de lagarto
o que sua mãe
era de pedra
e o que sua casa
estava debaixo de uma pedra
O homem de lata
é uma condição de lata
e morre de lata
O homem de lata
tem beirais de rosa
e está todo remendado de sol
O homem de lata
mora dentro de uma pedra
e é o exemplo de alguma coisa
que não move uma palha
O homem de lata
é um iniciado em abrolhos
e usa desvio de pássaro
nos olhos
No homem de lata
amurou-se uma lesma
fria
que incide em luar
Para ouvir o sussurro
do mar
o homem de lata
se inscreve no mar
O homem de lata
se devora de pedra
e de árvore
O homem de lata
é um passarinho
de viseira:
não gorjeia
Caído na beira
do mar
é um tronco rugoso
e cria limo
na boca
O homem de lata
sofre de cactos
no quarto
O homem de lata
se alga
no Parque
O homem de lata
foi atacado de ter folhas
e se arrasta
em seus ruídos de relva
A rã prega sua boca
irrigada
no homem de lata
O homem de lata
infringe a lata
para poder colear
e ser viscoso
O homem de lata
empedra em si mesmo
o caramujo
O homem de lata
anda fardado de camaleão
O homem de lata
se faz um corte
na boca
para escorrer
todo o silêncio dele
O homem de lata
está a fim
de árvore
O homem de lata
é um caso
de lagartixa
O homem de lata
é resto anuroso
de pessoa
O homem de lata
está todo estragado
de borboleta
O homem de lata
foi marcado a ferro e fogo
pela água.
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