Cinthia Kriemler - Viúvas de sal
O mais recente lançamento de Cinthia Kriemler é um romance com alguns temas recorrentes no estilo visceral de outras obras da autora, tanto na prosa quanto na poesia. Em Viúvas de sal, a violência contra o gênero feminino é perpetuada por uma rotina de ritos patriarcais e perseguiçao religiosa, mantendo as personagens presas a um destino cruel e inescapável, do qual apenas a morte pode representar um alívio. A ação é situada na fictícia Cooperativa de Pescadoras de Porto do Xaréu, em Pernambuco, uma organização que exerce na prática o conceito de sororidade para além dos discursos feministas, como destacado por Taciana Oliveria na orelha do livro, ou seja, uma alternativa à insuficiência de políticas públicas, espécie de irmandade, com base no afeto e na solidariedade, que salva essas mulheres de uma miséria ainda maior, decorrente da viuvez precoce e da exclusão social.
A narrativa é feita em primeira pessoa por Augusta dos Santos, uma forasteira, sobrevivente da violência e de tudo aquilo que deixou no passado: profissão de advogada, família e a própria história. Ela conduzirá o leitor ao longo desta saga de dor e resistência, vivenciada com as companheiras: Tonha, Ciça, Sebastiana, Josefa, Binta e Augusta, assim como muitos outros habitantes de Porto do Xaréu. A cooperativa foi criada por Tonha em 2011, "[...] Desamparada pela inexistência dos filhos que arrancou da barriga um a um. Marcada pelas ausências do pai e do marido, mortos no mar." É Tonha quem mantém as mulheres unidas na luta pela sobrevivência, tornando a cooperativa mais do que uma oportunidade de trabalho, na verdade um espaço de escuta e acolhimento que acaba tornando-as primeiro amigas e, depois, irmãs.
"É um cadáver pequeno. Trazido pela maré em seu hábito de fluxos. A nudez desonesta exibe a genitália tímida. Menina. Ou deveria ter sido. O corpo miúdo deitado na areia úmida lembra o de uma boneca desfeita. Silenciosa. Silenciada. Desampara, uma morte assim tão feia. Mas esse não é o primeiro corpo de criança que aparece na praia. É desde sempre que o mar acolhe os fardos da miséria. / Alívio. Nos rostos das mulheres que formam um círculo irregular ao redor da menina morta. Alívio. Uma fêmea a menos para crescer. Para morrer de fome, de abandono, de desvalia. Para se prostituir. Para se degradar. Para quebrar. Uma agressão a menos, um estupro a menos, um assassinato a menos. Alívio. Uma velha a menos para cumprir o calvário de solidão e de loucura. Uma lésbica a menos para ser odiada e ameaçada. Uma mãe a menos para chorar o assassinato das crias. Uma menina a menos para aprender submissão. Alívio. As mulheres no círculo sabem que é bom morrer." (p. 10)
Binta também é uma forasteira que se uniu à cooperativa, refugiada da África, Guiné-Bissau juntamente com a filha Mariama, ela fugiu da família para tentar evitar que Mariama sofresse a mesma brutalidade da infibulação, uma tradição no seu país natal que consiste na mutilação do clitóris das meninas: "Nas suas memórias, a gilete enferrujada, a mãe sujigando o seu corpo que corcoveava como um cavalo chucro, o sangue esguichando por entre as pernas. E as mulheres comemorando aquele horror com gritos primitivos e danças histéricas. Sem perceber que, enquanto o clitóris da menina Binta era mutilado, todo o resto dela também era mutilado. Identidade. Fé. Sanidade. Destruídos por uma lâmina. Quantos anos ela tinha? Cinco? Seis?"
Já Ciça, é uma vítima local do preconceito e perseguição religiosa. Após um casamento de quatroze anos com dois filhos, apanhando de um pescador violento que vivia bêbado e morreu numa briga de bar, ela decide refazer a sua vida com Eustáquia, mas as duas sofrem um verdadeiro linchamento público orientado pelo pai de Ciça, o pastor Ezequiel, líder religioso na comunidade, sendo impedidas de comprar na quitanda e no supermercado e tendo que lidar com as constantes pichações no muro da sua casa. "Antes que a manhã termine, ela vai ser presa. Por invasão e depredação. Na igreja de Ezequiel, a devastação será a prova da fúria dessa mulher que não aceita mais provocações. As pichações no muro, os gritos de madrugada, as fogueiras, as histerias berradas nos cultos. Chega."
"Manhã de domingo. Na igreja do pastor Ezequiel, os fiéis chegam aos lotes. Famílias de pescadores, trabalhadores do sindicato, comerciantes. Uma tropa barulhenta essa que vem se encontrar com o seu Cristo. Olhando para eles, a impressão é de paz. Mas as impressões não são confiáveis. Há presas e garras escondidas em cada sorriso, em cada gesto estudado de compunção e louvor. Um rebanho pronto a trucidar as carnes dos pecadores. Hoje, estão particularmente agitados. A notícia de que a filha do pastor virá ao culto para se desculpar publicamente pela destruição da igreja deixa todos excitados. Não vêm a hora de gritar e gesticular amaldiçoando a varoa imunda que se deita com outra varoa – essas as palavras que vomitam. Vão exigir da criatura sem preceito que seja arrependimento, capitulação, conversão. De joelhos. Vão exigir aos prantos. Aos berros. E o demônio será subjugado aos gritos de Queima, Jesus! Farejam o sangue do cordeiro. Vampiros sedentos. Planejam para Ciça a imolação." (p. 61)
Durante a pandemia as atividades da cooperativa precisam ser interrompidas e as mulheres procuram por outras formas de sobrevivência. Sebastiana retorna à prostituição, mas não consegue assumir a mesma indiferença ao uso do corpo, depois da experiência na cooperativa: "Malditas manchas de óleo! Maldita pandemia! Mas se não fossem esses filhos da puta que me comem, os meus filhos iam passar fome. Ela está ressentida. Já não consegue mais fazer o sexo automático de antes. Parar. Novamente. É tudo o que ela mais quer. Mas tem medo de que haja outra proibição de pesca, um acidente, uma doença, qualquer coisa. A vida da gente não vale nada, diz com desânimo."
Cinthia Kriemler nos apresenta novamente um romance com potência e originalidade narrativa, um estilo forte no qual a urgência de escrever sobre aquilo que existe de mais perverso, vergonhoso e bárbaro no comportamento humano, não compromete em nada a beleza e o lirismo do texto.
"Sebastiana não consegue dormir. Sentada ao lado de um barco emborcado na areia, pensa no que tem sido a sua vida. Um cansaço desconhecido toma conta dela. Não é o corpo. É a cabeça que está exausta. Antes, ela não pensava. Porque trepar com os homens era a única opção. Agora, ela pensa demais. O tempo todo. Se cobra, se recrimina, se odeia. Por isso se afastou de Tonha. Não precisa que ninguém aponte a ferida aberta supurando dentro dela. Um corpo, enquanto moeda de troca, é ferramenta de sobrevivência. Fazer uso de si mesmo requer ausências. De culpa, de remorso, de medo. É preciso ser um instrumento de trabalho. Como os alicates, os pincéis, as panelas, as vassouras, os bisturis. Que cortam, pinçam, limpam, alimentam. Um corpo não é o último recurso. É um deles. Às vezes, o mais eficiente." (p. 100)
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