Valéria Martins - O lugar das palavras

Literatura brasileira contemporânea
Valéria Martins - O lugar das palavras - Editora 7Letras - 132 Páginas - Capa de Luiza Chamma - Lançamento: 2023.

Com uma combinação original entre romance e contos, a agente literária Valéria Martins faz a sua estreia na ficção utilizando a própria experiência no mercado editorial como inspiração para a criação do protagonista-narrador Rafael Sant'Anna, um jovem recém-formado em jornalismo que sonha em se tornar escritor. No entanto, assim como tantos outros autores iniciantes, Rafael, que está desempregado e precisa cuidar da mãe e da avó dependentes, logo percebe que escrever bem é uma condição necessária, mas não suficiente para ter sucesso na área de literatura, uma empreitada que demanda muito trabalho e organização para vencer as etapas de criação, publicação e divulgação, verdadeiro desafio em um país de ótimos escritores e poucos leitores. 

Orientado por uma colega de faculdade que trabalha na assessoria de imprensa de uma grande editora, Rafael se inscreve em uma oficina literária e começa a descobrir o lugar das palavras, desenvolvendo os seus próprios contos em exercícios de escrita criativa que são inseridos ao longo do romance. Os fragmentos e narrativas curtas criam uma dinâmica que surpreende o leitor devido aos diferentes temas e estilos. Assim, podemos estar na linha de fogo de um tiroteio, encostados à mureta da passarela em uma favela do Rio de Janeiro ou em um bar no Japão, presenciando uma sequência de roteiro cinematográfico que lembra Haruki Murakami, para logo voltar ao Brasil, na Ilha de Marajó, conhecendo Matinta Perera, mito do folclore local.

"No jardim de concreto marcho todo dia a caminho do trabalho. Descer ruelas, saudar vizinhos, parceiros de tijolo e argamassa, construções apinhadas, arquitetura escassa. Não troco por nada. Em frente ao mar, não quero. No asfalto, também não. Prefiro morar embolado, respirar o mesmo ar. Cães vadios, caçamba de lixo, valão, sujeira a céu aberto. Nosso lar. / Recomeçou a guerra. Quase dois anos em paz; agora, tudo como antes. Mariposas cortam o céu, pousam nos desavisados a caminho da escola, do serviço. Crentes se jogam no chão, oram pela paz. Reza sem efeito. Vai ser tudo igual enquanto houver favela, político corrupto, playboy viciado. / O pai foi embora cedo, deixando eu e mais dois pra mãe cuidar. Guerreira, levanta às três e meia, barraca de legume na feira. Vai a Ceasa, compra abobrinha, berinjela, cenoura, beterraba, cebola. Cresci no meio das verduras, minha saúde é de ferro, nem resfriado eu pego. Sou estoquista em supermercado, salário mínimo, almoço farto. Mas se a gente falta um dia, é descontado. Faltei uma vez porque a mãe passou mal, parecia enfartar. Fomos ao hospital, quase três horas até o médico chegar. / O pai. Uma lembrança, um ódio, uma esperança – de um dia reencontrar, reconhecer, dar um esporro pela lambança." ( pp. 17-8) - Trecho do conto Pai

Rafael se dedica ao ritual da escrita trancado em seu quarto de onde enxerga da janela uma porção da favela, um pedaço de céu, um galho de árvore. Ele busca inspiração na Grande Esfera Negra, um lugar onde pode se afastar da realidade e descobrir a mágica das histórias e das palavras certas, essa viagem fascinante que todo escritor conhece bem. Ao longo da saga do jovem protagonista, vamos acompanhando e reconhecendo os prazeres e dificuldades da atividade de criação literária no Brasil, torcendo para que ele consiga atingir os seus objetivos.

"Nossos drinques chegam borbulhantes, coloridos. Balas de menta, Fini Tubes, glacê. Movimento fraco, gatos pingados, bando de derrotados. Garotas lindas como nós ao alcance das mãos. Idiotas fodidos. / Eu, Hana e Sori íamos terminar de beber e bater em retirada quando eles chegaram. Parecia câmera lenta, os sobretudos bem cortados, camisas brancas, gravatas, luvas negras. Cheios da grana, dava para ver. O senhor Matsuda, atrás do balcão, sacudiu a coqueteleira no alto como sinal de boas-vindas. Foi ignorado. / Tratamos de nos movimentar, rir alto, dar gritinhos, fingir que contávamos segredos nos ouvidos uma das outras. Hana cruzou as pernas, as novas botas de vinil rosa-choque cintilando no escuro. Saori, com seu trejeito-marca-registrada, quase um tique nervoso, puxou a franja por sobre o rosto marcado de acne. Como sempre  a mais discreta das três, amparada em minha boa aparência, limitei-me a afrouxar o cinto do quimono de certim vermelho, deixando entrever a lingerie negra por baixo. Fomos notadas. Senti seus olhares frios quando se aproximaram e tive medo do que estivesse por vir. Tarde demais." (p. 46) - Trecho do conto Aventura mangá

Difícil não se identificar com as angústias de Rafael: "Não sei porque quero tanto ser escritor, insistir nessa ideia, se não vou ganhar dinheiro, não vou ficar famoso, vou passar o resto da vida deitado na cama olhando a favela, o galho da árvore e o pedaço de céu, às voltas com a bagunça dos meus cadernos." Um livro muito bem escrito por uma profissional experiente na área de agenciamento literário, especialmente recomendado para o pessoal que atua no mercado editorial, mas que agradará também ao leitor comum, esse indivíduo cada vez mais raro.

"A cabeça do búfalo mirava-o, como se ainda tivesse os olhos, no centro dum encharcado de sangue e moscas. Órbitas vazias, boca semiaberta, uma ponta de língua roxa para fora, como se agonizasse. O cheiro de sangue e linfa preenche o ar e o alcança, impacto potente. Mais uma vez pergunta a si mesmo o que está fazendo ali, por que não vai embora. / Quando chegou, havia um simulacro de paz, redenção. O plano era viver só, junto da natureza. Nada nem ninguém para lhe amolar ou ter que dar satisfação. Criar galinhas, fazer horta. Cuidar de si. Já que era um desastre nas relações com os outros, melhor isolar-se. Agora, sim, teria sossego. Será? É um dos poucos estrangeiros na ilha. Os nativos o rejeitam, fazem tudo para enxotá-lo. Já lhe roubaram a roupa do varal, espalharam, espalharam lixo em seu quintal. / Diz um palavrão, entra na casa. A lixeira num canto da cozinha transborda, mas falta ânimo para manipular os restos que ele mesmo produz, provas de sua rotina miserável. A roupa de cama é a mesma desde que chegou, há meses. A toalha no varal já tem a cor do chão. Pergunta-se, também, como chegou a esse estado. Antes que se abra a cratera sem respostas, move o pensamento para outras bandas." (p. 53) - Trecho do conto Fim do caminho

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Valéria Martins é formada em Jornalismo pela Puc-Rio. Trabalhou para diversas revistas das editoras Bloch, Globo e Abril, e para os jornais O Dia e Valor Econômico. Em 2004 migrou para o mercado editorial e atuou em duas grandes editoras: Elsevier e Grupo Editorial Record. Em 2008 fundou a agência literária Oasys Cultural. Autora de vários livros de ficção e não ficção, entre eles, “A revolução da longevidade” (Alaúde, 2021), “Sara anda mais bonita” (Megamíni, 7Letras, 2016), “A pausa do tempo” (Jaguatirica, 2013), “A matéria dos sonhos” (ebook, Jaguatirica, 2014), “Encontros com Deus – 21 personalidades narram sua busca espiritual (Mauad, 1997). Em 2023 lançou “O lugar das palavras” (Ed. 7Letras), híbrido de conto e romance.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O lugar das palavras de Valéria Martins

Comentários

pausado tempo disse…
Caracaaaaaa ❤️ essa avaliação vinda do Alexandre Kovacs é um prêmioooo ❤️ muito obrigada pela leitura e resenha ❤️❤️❤️
Alexandre Kovacs disse…
Oi Valéria, resenhar livro bom é muito fácil. Parabéns e boa sorte na divulgação! Grande abraço.

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