Juliana Garbayo - Coisas difíceis de ressuscitar

Literatura brasileira contemporânea
Juliana Garbayo - Coisas difíceis de ressuscitar - Editora Caos & Letras - 160 Páginas - Capa: Eduardo Sabino - Diagramação e Ilustração: Cristiano Silva - Lançamento: 2023.

Esta antologia de contos é o livro de estreia de Juliana Garbayo, obra vencedora do Prêmio Digital da Biblioteca Pública do Paraná em 2021 e agora publicada pela Caos & Letras. Todos os contos apresentam personagens em crise, lidando com algum tipo de perda e os transtornos psíquicos associados. A autora utiliza a sua experiência na psiquiatria para demonstrar com base nas narrativas inusitadas e confessionais de seus protagonistas, nem sempre confiáveis, como algumas coisas são mesmo difíceis de ressuscitar, quando nos resta o legado da dor e o sentimento de luto que pode ser decorrente de muitas possíveis mortes: a solidão provocada pelo fracasso do relacionamento amoroso, o trauma da amputação de um membro ou a saudade do animal doméstico que se transforma em um cão empalhado para apoio aos pés, como é o caso do surpreendente conto que empresta o título ao livro.

Já no texto de abertura, Num desses domingos, Juliana Garbayo apresenta um sensível exercício de literatura ao condensar em três curtos parágrafos todo o desespero da solidão compartilhada de um casal. Infelizmente, uma situação mais comum do que se imagina, na qual duas pessoas anteriormente felizes, continuam supostamente vivendo juntas, mas incomunicáveis durante todo o jantar: "Continuamos sentados por um bom tempo, sem dizer palavra, o tique-taque do relógio preenchendo cada vez mais a pequena sala onde outrora fomos felizes, até que sem qualquer aviso ela se levantou e sumiu no corredor, não sem antes apagar a luz como se eu não estivesse ali, como se eu não existisse, o último ato de desrespeito em uma lista já longa demais." 

"Naquele guisado havia dor, havia mágoa e desespero naquela carne, nas batatas cuidadosamente descascadas e cortadas; mas era a raiva, acima de tudo, o que ela servia na bandeja pousada entre nós. Houve um tempo em que a comida era ponte, agora aterrissava ali como pedra que marca fronteira: Come, ela disse, sem fazer menção de me servir. Não tenho fome, respondi simplesmente, sem levantar os olhos da mesa. Não tenho outra coisa pra te oferecer, as palavras saíram da sua boca mais como pensamento do que como fala. Há tempos não quero nada que você possa oferecer, eu disse, e senti o alívio que era me libertar do fardo dessa verdade. / Em outra época, ela teria me servido com devoção e paciência, só então se sentaria e serviria a si mesma; já havia meses que não se dava esse trabalho, às vezes sequer me esperava, discretas desvenerações que ia pouco a pouco me empurrando. Elisa se inclinou em direção à comida, mas só descansou os cotovelos dobrados sobre a mesa, trazendo o resto do corpo bem devagar atrás, como se seus gestos tivessem sido decompostos em câmera lenta. Uniu as mãos em concha e repousou ali a cabeça; ótimo, lá vêm as lágrimas, pensei, com profundo cansaço; mas não, as mãos deslizaram pelos cabelos até a nuca e ela levantou o rosto: tinha os olhos secos. Ficamos ali sentados, sentindo a força quase opressora de um silêncio antigo, o único barulho sendo o tique-taque do relógio pregado na parede." (pp. 13-4) - Trecho do conto Num desses domingos

Algumas situações estão no limite entre o real e o fantástico, como Um tempo para cada coisa, que nos mostra o estranhamento da situação da amputação repentina de um membro após um acidente de moto e a perplexidade do protagonista, apavorado com a interpretação da tia sobre lutos que a sociedade não reconhece, como a perda de um pé: "[...] Então ela me explicou que tinha requisitado meu pé à equipe de cirurgiões, mas precisava da minha assinatura, e ficou repetindo que não ia deixar meu pé ser incinerado como um pedaço de carne qualquer, nem enterrado em vala comum, que ela tinha ligado pra funerária e acertado tudo para dar um enterro digno ao meu pé, que ele ia descansar no jazigo com a minha mãe e a minha avó."

"Sinto muito, não conseguimos salvar seu pé. Só lembro dessa frase saindo da boca do doutor Taylor, mas claro que ele começou a falar comigo bem antes disso, assim que acordei da anestesia. Perguntou se eu lembrava de ter batido com a moto. Disse que era segunda-feira, oito de abril e que estávamos no segundo andar do Hospital Santa Eustáquia de Messina, que os bombeiros tinham serrado as ferragens pra soltar meu pé e que eu tinha chegado inconsciente na ambulância. Nesse ponto decidi que estava tendo um pesadelo e fechei os olhos pra ver se doutor Taylor e aquela náusea sumiam. Quando os abri de novo, o quarto era o mesmo, mas doutor Taylor tinha desaparecido e era tia Esther na poltrona de couro amarelado me olhando. Pulou da poltrona como quem presencia um milagre: Graças a Deus, meu filho! Chegou perto da cama, pousou a mão quente no meu braço: Como você está?" (p. 17) - Trecho do conto Um tempo para cada coisa

Entre tantos personagens deslocados e insólitos, o que dizer então de um cão empalhado que restou como lembrança de um relacionamento acabado. Um companheiro mudo de olhos de vidro que não pode ser ressuscitado, assim como tantas outras coisas, presenciando a solidão de sua antiga dona ao escrever cartas para um presidiário: "Eu escrevo para um homicida a mil e trezentos quilômetros de distância e recuso a chamada quando ele liga a cobrar. Ele pensa que sou uma boa mulher. Em sua última carta me pediu para rezar por ele. Como se minha oração tivesse peso diferente. Uma vez perguntou se aceitaria encontrá-lo, caso saísse na condicional. O bom de conversar por cartas é que você só reponde o que quer."

"Comecei a sentir uma forte necessidade de falar sobre Zion naquela carta. Explicar que seus olhos eram vivos e quentes no começo, não opacos como agora, que tentei me habituar a esses olhos de vidro, que cheguei a dormir enroscada nele, minha perna sobre seu corpo mesmo que os pelos duros me arranhassem e o barulho das patas vergadas sob o meu peso fosse aterrador. Que eu empalhei meu cachorro. Eu o empalhei e guardei na prateleira da sala como se fosse uma relíquia qualquer para acumular poeira, depois o soquei no fundo do armário e rezei para que não fugisse de lá. / Agora estou na sala e ela está escura como sempre fica nas tardes de inverno, ainda que eu abra as cortinas. Nunca fecho as cortinas. Não tenho vizinhos, em frente só há o muro descascado de uma garagem cinzenta e vazia, e as plantas precisam da claridade que chega com a manhã, enquanto ainda estou dormindo. Os vasos estão entulhados à esquerda, onde bate mais luz, eu os amontoo naquele canto para que peguem mais sol, para que convivam, mas, acima de tudo, para que eu possa molhá-los com um movimento único do regador. Eliel dizia que eu deixava até cactos morrerem e para contrariá-lo cultivo orquídeas e coisas difíceis de ressuscitar." (pp. 105-6) - Trecho do conto Coisas difíceis de ressuscitar

Literatura brasileira contemporânea

Sobre a autora: Juliana Garbayo é carioca e atualmente mora em Portugal. Psiquiatra, mestre em Estudos Editoriais e mestranda em Psiquiatria Psicodinâmica na Universidade do Porto. Tem contos publicados em concursos, antologias e revistas literárias e é mediadora do Leia Mulheres Porto. Em 2021, seu livro "Coisas difíceis de ressuscitar" venceu o prêmio literário da Biblioteca Pública do Paraná (Biblioteca Digital).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Coisas difíceis de ressuscitar de Juliana Garbayo

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