Pádua Fernandes - Assassinato e ascensão do grande escritor

Poesia brasileira contemporânea
Pádua Fernandes - Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa) - Editora Patuá - 128 Páginas - Projeto gráfico e diagramação: Laura Daviña - Lançamento: 2022.

O lançamento deste livro marca os 20 anos de carreira de Pádua Fernandes com uma seleção de poemas inéditos e alguns já publicados, mas sempre lidando de forma irônica com a estranheza e o desconforto dos temas pouco convencionais na poesia, uma constante na sua obra, como no anterior "O desvio das gentes" (Patuá, 2019). O próprio mérito de se publicar uma Antologia é criticado pelo autor de forma bem-humorada: "Seria ridículo que, depois de vinte anos da publicação do primeiro livro, o soi-disant autor quisesse organizar uma antologia. Nós o convencemos de que seria patético comemorar a si mesmo; ademais, com tanto material inédito, para que insistir nos erros passados? O futuro também merecia a oportunidade de falha!"

Pádua Fernandes nos oferece uma visão crítica da função da poesia em nosso tempo como, por exemplo, em Antologia do mundo, ou exceto pela bomba: "o poeta anuncia em rede social a própria morte / somente para depois da partida esportiva; / segue os especialistas em marketing, / escolhe o momento / de maior engajamento do público; // matou-se, porém ninguém notou; / explodia uma guerra em outro canto do planeta, / os tempos são ricos em demasia / para assuntos de poesia" De fato, o poema pode ser algo tão inútil "quanto dentes fora da boca" e como bem sabemos só existe uma razão para criar algo inútil: "gente de bem não escreve poesia / a única desculpa de produzir algo inútil / é vendê-lo por um preço extorsivo".

Oficina

I
Lápis servem para assassinatos;
para esse fim
não é necessário apontá-los.

Apontadores não costumam ser usados
em assassinatos;
contudo, foram surpreendidos perto dos lápis,
indício de cumplicidade
no sangue derramado.

Ainda não se investigou
O uso das borrachas
para apagar as provas;
as borrachas trazem em si as marcas dos lápis,
que, por vezes, lhes atravessam o coração.
Com cicatrizes ou veias abertas,
borrachas também são objetos suspeitos.

Lápis servem para poemas;
suspeito, porém,
que para esse fim
é necessário apontá-los.

II
O papel acolhe as provas do assassinato
o papel acolhe as gotas do sangue do assassinado
o papel acolhe as notícias da morte
e as mãos da vítima ao rasgá-lo
durante a agonia

o papel acolhe os gritos do golpe
a surpresa do golpe diante da solidez do corpo
o horror do corpo ao descobrir que escreve
no ar
com a queda

acolhe os riscos das unhas
que escrevem na parede o nome do assassino
um último poema
destes lápis improvisados

o papel acolhe
a surpresa da gravidade
de perceber que ela também cai
sob o sistema de sabotagem das leis
chamado Justiça.

III
A partir de que hora ou dia ou século
os riscos do lápis apodrecem? A putrefação
dos riscos do lápis empesteia
o ensaio, o romance ou a poesia?
Ou as bactérias recusariam
matéria tão vil?

Quando os riscos de lápis começam
a apodrecer, o mesmo ocorre 
com a mão de quem o segurou?
Como fedem os engenheiros 
criando cacos futuros
no capitalismo da obsolescência,
os poetas apodrecem na própria imagem
deixada nas redes insociáveis?

Os traços deixados pelo lápis, antes
de atraírem moscas, já não teriam feito o mesmo
com a mão de quem  empunhou,
em retribuição às manchas sobre o papel,
mera corrupção do silêncio?

O poema não respondeu ao inquérito
porque apodreceu.

Os vermes compareceram ao seu enterro
mas continuaram famintos

Poema, terra arrasada
até para as bactérias.

Apodreceu. Imita o país.

IV
O escritor mais vale se morto.

É hora de o papel voltar ao branco.

Desistência da hipógrafe
da Antologia completa

O poema tão seu e tão alheio
quanto dentes fora da boca

O livro tão ruidoso e tão silêncio
quanto dentes fora da boca

Tão faminto e tão saciado
quanto os dentes 
fora do autor

ele confunde a presa com a fera
é devorado com ambas

Futuros fósseis
a serem encontrados e reconstituídos
os dentes 
fora da boca

com eles o poema morde
não sabemos se ele alimenta a si ou a sua fome
ele não tem hora para caçar
o tempo é o fóssil do poema

O autor fora dos dentes
não saberia o que fazer
não abocanharia 
nenhum livro
nenhum verso

O fragmento tão completo quanto o soco
que derrubou os dentes
e libertou a boca

Poesia brasileira contemporânea
Sobre o autor: Pádua Fernandes (Rio de Janeiro, 1971) escreveu os livros de poesia "O palco e o mundo" (Lisboa: &etc, 2002), "Cinco lugares da fúria" (São Paulo: Hedra, 2008), "Cálcio" (Lisboa: Averno, 2012; City Bell: Libros de la Talita Dorada, 2013, com tradução para o espanhol de Aníbal Cristobo; São Paulo: Hedra, 2015), "Código negro" (Desterro: Cultura e Barbárie, 2013), "Canção de ninar com fuzis" (Bragança Paulista: Urutau, 2019) e "O desvio das gentes" (São Paulo: Patuá, 2019). Publicou também o volume de contos "Cidadania da bomba" (São Paulo: Patuá, 2015; edição digital e-galáxia), o romance "Gravata lavada" (São Paulo: Patuá, 2019) e o ensaio "Para que servem os direitos humanos?" (Coimbra: Angelus Novus, 2009). Organizou a única antologia brasileira da poesia de Alberto Pimenta, "A encomenda do silêncio" (São Paulo: Odradek, 2004). Realizou pesquisa de pós-doutorado no IEL–Unicamp sobre literatura brasileira contemporânea e justiça de transição. Foi pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e da Comissão da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo.

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