José Nascimento - A noite dentro de nós
Os contos do livro de estreia de José Nascimento têm como inspiração a fragilidade dos relacionamentos na era dos amores descartáveis, a frustração com o trabalho e a violência urbana; fatores que intensificam a angústia dessa "noite" que cresce cada vez mais dentro de nós. A condução das narrativas em primeira pessoa – nem sempre confiáveis, diga-se de passagem – permite ao autor explorar o impasse existencial de seus personagens e nos fazer compreender a solidão de uma época na qual as redes sociais e aplicativos de relacionamentos se multiplicam para aproximar as pessoas e, contudo, atingem um resultado oposto na prática.
No conto de abertura, Tulipas roxas, um casal se reaproxima cinco anos após a separação por meio de um aplicativo. Rafael é o nome do perfil falso que o homem criou buscando corrigir os erros do passado por meio de uma nova personalidade. Ele se arrepende de marcar o primeiro encontro, inventando desculpas para manter o namoro virtual. Já a mulher têm esperanças de que aquela relação possa se transformar em algo real e força a situação de um inevitável encontro presencial que acaba ocorrendo, apesar das postergações. Utilizando duas vozes narrativas, o autor mostra os diferentes pontos de vista dessa triste história de amor moderna.
"Um homem consegue mudar em cinco anos? Olho para trás, e me irrita o homem-pênis que fui, embora reste algo dele, por mais que eu abomine, mesmo que o psicólogo me aconselhe a procurar uma nova pessoa, um percurso alternativo, deixar o passado em paz. Quando leio o que fiz, ela maltratada e preterida, porra, é uma longa ressaca moral, um lento inferno. / Cinema, restaurante, pizzaria, que diferença faria para mim? Ela escolheu o local e o horário do encontro seguinte. Se eu excluísse o perfil e desaparecesse, como antes? O rapaz de costas na praia verdíssima deixaria de existir, cada coisa regressaria a seu lugar. Eu retomaria a vida exata e medíocre (e solitária desde a separação), e ela... ela, não sei. Talvez uma amiga a consolasse, ou talvez conhecesse outro homem, um mais honesto; os especialistas em relacionamentos garantem que as possibilidades sempre existem. / O retrovisor central do carro me mostra um sujeito com uma tristeza mole nos olhos. Afora o nome e mais algumas pequenas mentiras, pequenas e esquecíveis, estou muito próximo a Rafael, ou ele é uma versão melhorada de mim, de tal forma que não compreendo quando ele conclui e eu começo." (p. 11)
O noticiário também serve de inspiração para os contos de José Nascimento, como em "A fogueira", narrado por um protagonista em situação de rua que sobrevive após ser incendiado enquanto dormia; ou "O homem da bicicletinha velha" que mostra o acerto de contas entre o agiota e o desempregado que teme por sua família: "Se o agiota descesse do carro, de arma em punho, e invadisse a casa, haveria uma chacina? O homem não teve dúvidas, desvencilhou-se do abraço da esposa e foi à porta. Não atire, a gente vai conversar, vou sair, gritou. Escondeu a tesoura no bolso da bermuda, única arma disponível, e se dirigiu ao portão."
Um outro exemplo de relação líquida, como definido pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, está no ótimo "Barulho de pia pingando" que mostra como, na velocidade do mundo atual, os parceiros rapidamente perdem o interesse em manter um amor que acaba escorrendo pelas mãos: "As conversas se reduziram ao necessário do cotidiano. Eu preferia o sofá, o silêncio, o afastamento. O divórcio se incumbiu de remover as cascas: agora não precisava mais me preocupar com murmúrios no sono e conviver com a suspeita de ter deixado escapar um nome recriminatório." E, no final, estamos todos conectados e cada vez mais solitários.
"Há noites em que sonho com a aluna de olhos de sono, ou com a que morde os lábios, ou com a do sol particular. Cada uma a seu modo, as três me atraem. Mas assumo que são amores impossíveis. Já me vi obrigado a permanecer sentado durante a aula até transferir meus pensamentos para temas mais acadêmicos. Algum fofoqueiro me chamaria de tarado, seria um escândalo. Não. Estou longe de ser tarado: sou um apaixonado, um romântico. Não pretendo materializar os desejos, não pretendo ir além do que um professor deve. O que mais me atrai não é o desfrutar da carne. Quase sempre os desejos se mantêm no campo da imaginação, da cobiça silenciosa. E, se tivesse relacionamento amoroso com qualquer uma delas, ainda continuaria apaixonado pelas outras. / Eu e minha esposa combinamos de novo um churrasco com meu cunhado e minha prima, no próximo final de semana. Sinceramente, não sei se foi uma boa ideia: nosso casamento piorou após ela se embriagar, no último churrasco, e contar que há poucos dias teve a bunda apalpada por um colega no trabalho. Ela disse que reclamou, mas, no fundo, não era ruim se sentir desejada por um homem nais novo. Temo exagerar na bebida e falar sobre as estudantes. Não posso cometer o mesmo erro de minha esposa." (pp. 24-5)
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