Danilo Brandão - Até a última gota
Neste mais recente lançamento, Danilo Brandão consolida o estilo do seu livro de estreia, Tempos ainda sem nome, apresentando mais uma vez contos formados por uma sequência de frases curtas, entremeadas por diálogos em sua maioria sem pontuação, uma tendência comum na ficção contemporânea. Outra característica recorrente é a dos textos demandarem atenção redobrada do leitor que deve lidar com múltiplas vozes narrativas e saltos temporais, recebendo informações fragmentadas sobre o passado dos personagens para entender as suas reações diante dos preconceitos e problemas do nosso país no tempo presente, tais como a homofobia, intolerância religiosa, crise dos refugiados venezuelanos e a persistente desigualdade social.
O primeiro conto, "EXT/INT", é construído com base em blocos de texto que alternam trechos da vida de um repórter vivenciando um drama pessoal devido ao luto pela mãe e que viaja até Roraima, Boa Vista, para cobrir a situação de mulheres e crianças venezuelanas exiladas na rodoviária da cidade. Na verdade, uma matéria paga pelo governo local que pretende faturar politicamente com a situação. Sem vagas nos abrigos, as mães se desesperam na gravação da entrevista: "Filhos? Não temos mais filhos. Temos crias. Crias. Morrendo. Todos os maridos estão lá dentro. Não deixam entrar. Só a gente. A gente e eles, moço. Eu cheguei aqui há oito semanas. Meu filho com dez anos. Hoje, com onze. Enganaram a gente, moço. Ajuda. [...]"
"Eu estava farto do frio da guerra. Estava cansado da primeira pessoa. Então, enfrentei alguns metros de frio na madrugada e decidi me cortar nas falas das mães presas naquela praça. Elas estavam juntas, no canto, enquanto os seus filhos dormiam amontoados em cobertores coloridos. Aquela fileira de jardim formada pelos tecidos étnicos coloriam o negrume do cimento da rodoviária de Boa Vista. Quando apenas a primeira delas me avistou, correu em minha direção. Eu não precisei perguntar. Era a chance que elas tinham. Tive vontade de sumir. Mas elas me puxaram. Mordiam meus braços, arrastavam meu rosto para o monte que formavam seus filhos. Eu não entendia o que diziam. Olhei para os lados. Procurei os seguranças. Mas era tarde. Tarde para todos nós. Um amontoado de mães desesperadas por uma terra. Prontas para cobrir os seus filhos com a segurança de um Estado. Depois da morte, ninguém tem coragem mais de se olhar. Era como se as suas retinas tivessem se transformado em mercúrio bloqueando a visão do mundo externo, que passava em looping o fracasso de suas missões: proteger a prole. Oito semanas. Eu ouvi uma delas gritando em castelhano. Acha que é pouco? Você conseguiria? Ser a mãe de um filho morto? Desterrado? Senti o ar me faltando naquela madrugada. Minhas mãos suavam. Puxei o gravador do bolso. Tive dificuldade para apertar o botão. As cortinas abriram. Liguei. Consegui." (pp. 30-1) - Trecho do conto EXT/INT
Já o conto "Até a última gota" é o mais difícil de acompanhar devido ao deslocamento frequente do foco narrativo entre diferentes momentos do passado e o tempo presente. O protagonista trans relembra passagens de sua vida ao longo de uma viagem na linha vermelha do metrô em São Paulo, pensando em uma releitura da Ilíada, uma peça que tem o enredo atualizado para falar sobre a luta das mulheres em Penélope, abandono parental em Telêmaco e masculinidade tóxica em Odisseu, quando reencontra o pai envelhecido depois de mais de quinze anos e os traumas do passado: "Nada parece tão difícil quanto desviar de nossos próprios destinos."
"Qual é o seu maior desafio agora? Parece cansado, com os cotovelos afundados no balcão de metal. Uma alma que se arrasta pelos cantos de lugar nenhum. Vivia sempre, sempre cercado de amigos. Gostava de ostentar certo sorriso antes de tudo. Como foi? Será que eu me lembro do último dia? Ele me empurrou da cama até o balcão de um bar. Domingo de manhã. A avenida branca de neblina impedia um olhar perpendicular. O vento nos riscava a pele. Ele usava uma touca azul e parecia ensaiar alguma fala. Quer me dizer algo, pai? Foi um dos únicos dias que tive a coragem de lhe dirigir a palavra. Ele brincava de girar com a banqueta. Sentia os seus movimentos quase infantis. Queria me dizer alguma coisa. Estávamos só nós dois. Quase fui feliz por estar vivendo aquele domingo de manhã. Sem ele pedir, o garçom serviu um copo com gelo mergulhado num líquido vermelho. Sabe que eu nunca falei com meu pai? Eu não sabia. Ele se foi muito antes de eu ter a sua idade. Muito antes mesmo. Queria ter visto ele uma vez. Ele me visita algumas noites, mas nunca fala nada. Não queria testar ele. Não conhecia o limite daquela conversa. Depois, quando ele morreu, minha mãe se casou com um vagabundo qualquer. Sabe o que ela fez? Você sabe? Desiste de tentar atravessar a neblina com o meu olhar. Olhei para o seu copo. Ela me deixou na porta da casa da minha avó com minha irmã no colo. Tocou a campanhia e me pediu pra esperar. Não me beijou. Não me abraçou. Apenas jogou um casaco fedido no meu ombro e disse que logo minha avó viria abrir pra gente. Tchau, mãe. Tchau. [...]" (pp. 51-2) - Trecho do conto Até a última gota
A poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) se torna a musa inspiradora para o conto que tem como título o trecho inicial de um dos poemas mais lindos já escritos: O iceberg imaginário, particularmente no período no qual Bishop morou em Ouro Preto. A protagonista não nomeada, uma mulher já no final da vida, depois de dois casamentos e um filho, decide mudar: "Foi em um jantar iluminado pela luz fria da cozinha que decidiu partir em viagem até Ouro Preto. Queria conhecer a casa de sua poeta preferida." Assim começa uma possível história de amor entre esta mulher solitária e Jota, a viúva e dona da casa que ela havia alugado.
"Não era a primeira vez que estava ali. Mas era a primeira vez que se sentia andando de verdade por aquelas ruas barrocas. Atravessava as esquinas e cortava a neblina das primeiras horas do dia. Uma brancura assustadora pintava as dobras das casas rachadas e com janelas para a calçada. A água da chuva preenchia o vazio entre as pedras da rua. Olhou para frente. Conseguiu avistar, mesmo que apenas fragmentos, da estátua de Tiradentes instalada na praça central. Algo novo estava por vir. Um novo dia. Os comércios ainda estavam fechados. Sacos plásticos cobriam os produtos nas barracas dos camelôs artesanais. Mendigos adormeciam de mais uma noite deforme. E ela estava consada. Queria se erguer nesse novo dia e encontrar algo novo em sua frente. Um espaço. Sem filho, família e supostos maridos. Só com a poesia. Foi seguindo. Agora, já encontrava a praça central ainda morta naquela manhã. Adormecida. Passou por uma dezena de casarões setentistas. Placas homenageando escravagistas. Todos. Até Tiradentes pareciam estar de olhos fechados. Atravessou o pátio enorme e, ao começar a primeira ladeira, sentiu uma vontade enorme de dormir. Ali mesmo. Era como se tivesse corrido uma maratona inteira. Seguiu em frente. Ganhou a primeira ladeira residencial, o Hotel Toffolo, um dos mais antigos da cidade, e por uma ruela minúscula que dava o acesso a sua nova casa. Passou uma casa amarela, duas laranjas e mais uma amarela até chegar a sua: número 14. Era uma casinha pequena e azul. De fora, via-se apenas contrastes: uma enorme janela com vista para um muro e uma porta minúscula que dava acesso ao interior. Conferiu mais uma vez se era mesmo aquele o endereço e bateu palmas." (pp. 70-1) - Trecho do conto O iceberg nos atrai mais que o navio mesmo acabando com a viagem
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