Leonardo Valente - Relicário de cuspes
O mais recente lançamento de Leonardo Valente é uma obra ainda mais experimental e desafiadora do que seu livro anterior, criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos, se é que tal coisa é possível. A frase de abertura do autor, na forma de epígrafe, nos dá uma pista da estratégia que será desenvolvida: "Neste livro, interessa menos o que a palavra diz e muito mais o quanto machuca." De fato, as palavras são utilizadas como signos, em um contexto surrealista, provocando sensações decorrentes das emoções de um protagonista atormentado por seus traumas de infância. Com base em uma polifonia narrativa não linear no tempo, este homem-menino precisa mergullhar no seu mar interior para resgatar as palavras escondidas.
Neste verdadeiro quebra-cabeça literário, o leitor precisará confiar mais nas próprias emoções e menos na racionalidade para juntar aos poucos os elementos dessa história. A mãe, identificada como "a porta com placa de mãe", a tia cruel provedora da família e o pai violento, assim como uma misteriosa interlocutora chamada Yolanda completam o conjunto de personagens. No decorrer do livro, reconhecemos que a empatia despertada pelo sofrido protagonista é uma forma de identificação com algumas das nossas experiências ou violências que preferíamos ter esquecido ao longo do caminho, mas repousam no fundo deste oceano que é a nossa memória.
"O nome do menino é Carino. O meu também, mas não somos um. Na verdade, preciso mergulhar para encontrar esse menino e saber quem realmente é, para resgatá-lo daquele box gelado, repleto de pedaços de uma caixa de concreto despencada de repente, enrolá-lo em uma toalha, aquecê-lo com a minha vela, lavar aquelas panelas e servir arroz, feijão e bife. Não, a vela do banheiro não é minha, herdei da porta com placa de mãe que ainda não abro, mas que consegue indicar onde estão as chagas de Cristo, que sangram e coagulam todos os dias, ora na igreja, ora no banheiro, ora nas panelas da pia da cozinha. Yolanda perguntou por que o Choro e não respondi. Insisti apenas que precisava mergulhar naquele mar escuro e quente para tirar o relógio da parede do centro espírita e, quem sabe, apagar a cara de diabo do pai que carregava o menino nos ombros e o sufocava com o cheiro de cigarro lacrimogêneo. O mar não te cobra essa viagem, nem a porta que seja aberta, disse ela. " (p. 14)
"Relicário de cuspes" é uma obra que, apesar de brilhantemente escrita, não é recomendável para aqueles que buscam uma leitura leve com início, meio e fim. Contudo, pode ser uma experiência recompensadora se o leitor estiver disposto a empreender essa jornada psicológica. Por que devemos ler livros assim é uma pergunta que não sei responder, talvez porque a literatura possa nos salvar de nossos males, mesmo com toda a dor que ela provoca.
"O medo sempre me alcança, corro, mas ele é mais veloz. E uma vez enlaçado por suas cordas, volto a andar, piso na terra mais devagar, mas não a sinto. Vagar é isso, ter negado o direito ao tato no chão e não conseguir desenhar os próprios pés sobre o mundo. Mas não me entenda errado, Yolanda, não peço piedosas interpretações sobre minhas desglórias, nem misericórdia ao destino. O que faço mais uma vez é proclamar a ausência de um mapa e de uma rota em mim. Até o sangue velho dos meus pais que corre em minhas veias não sabe mais para onde ir, se perde no entrelaçado circulatório e se mistura ao líquido oxigenado das artérias, e me sufoca. Yolanda nada comentou." (pp. 112-3)
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