Rita Balduino - O feito afaga o gesto
Rita Balduino - O feito afaga o gesto - Editora Patuá - design gráfico: Ruth Klotzel - revisão: Wagner Clini - produção executiva do projeto: Célia Barros - Lançamento: junho/2018
A forma e o conteúdo são partes inseparáveis neste livro da artista visual e poeta Rita Balduino. Um conjunto composto por sete livretos independentes que exploram a relação das palavras não somente com a diagramação na página, mas também com a gramatura da folha ou a transparência do papel, conforme o efeito desejado pelo poema. Um projeto de extrema sensibilidade da autora e executado com muita atenção pela Editora Patuá.
Cada livreto guarda um conceito próprio a ser explorado pelo leitor por meio dos estímulos visuais. Destaquei alguns poemas e a descrição de cada parte feita pela própria autora. Infelizmente não é possível reproduzir em uma resenha a experiência sensorial, o que só é viável com as imagens e palavras juntas, ou seja com o "box" do livro em mãos. No entanto, os poemas ainda guardam a sua força mesmo sem o apoio das imagens.
Palavras de Olhar parte de um questionamento sobre a concretude da palavra “ver”. Este livreto que abre a série, busca a intimidade na relação de palavras e imagens. Um olho que invade o buraco da fechadura e encontra palavras que chamam e assediam. O embate entre o escrito e o visto também aparece nas palavras impressas e fotografadas.
toc-toc-toc
a campainha
emudeceu
toc-toc-toc
o olho mágico
não viu
toc-toc-toc
tem gente
ausente
na porta
Palavras de olhar |
Coisa de Falar aborda a voz, o ato de comunicar, a vontade como denúncia. A palavra emitida entra em sintonia e contraste com a agressão, ataque ou defesa, vontade de possessão e, incondicionalmente, a frustração que deságua na poesia. A palavra coisa remete a tudo que possa ter existência, assim o poema relata dores, denúncias, abusos e estados de alma. Palavras que cortam e ferem podendo encontrar um curativo em imagem e poesia.
às vezes
a voz no poema
aflora
a calma,
meio dia da alma,
refúgio de poeta
a voz da poesia
silencia
Paisagens explora a visualidade desde a ação de desenhar, dar forma, enformar o visto e o sentido. A paisagem surge aqui de caráter ambíguo pondo em relação signos e estados mentais que descubro mediante a observação e o desdobramento: palavras dentro de palavras, como as bonequinhas russas “matrioshkas” que vamos descobrindo conforme nos dispomos a abrir cada uma delas.
janelas
miram o infinito
solidão vagueia
num mar gotas
ausentes
Coisa de Crer incide sobre o imaterial, deus e a verdade, vida e impermanência. A concretude do olhar se expõe como ver quantidade sem fim, ver sem ter visto. O verbo divino da verdade gravita em torno da dúvida eterna.
a deus
de tanto ser
crê ser
esqueceu
de ver
devir
de voar
de repente
miríades
mil vezes
dez mil
cresceu o ser
de tanto olhar
adeus
As Horas é um livreto que se abeira do tempo que passa e se sustenta na nossa dimensão humana. Trata-se de um tempo universal que pesa e frustra, do cotidiano passageiro que se estabelece em cada esquina. Se em “coisa de crer” deus não alcança ver, em “as horas” o tempo fica e quem passa somos nós.
você
vai passar
passando
o tempo
vai
passar
por você
o tempo
não
vai passar
Coisa de Fazer volta a tratar da materialização, agora sentida enquanto ação que grava e atravessa a impermanência em ciclos de criação. O gesto que faz e a concretização do fazer em produtos que dão forma ao desejo e necessidades humanas, é contraposto ao gesto de refazer e à fragilidade dos processos de construção e elaboração. Aqui é a ação, o gesto e as atitudes enunciados em primeira pessoa que se evidenciam.
amassei o papel
antes de escrever
o escrito
saiu rasgado
sem palavras
as letras
ficaram turvas
e a poesia
incompetência
do poeta
foi esculpida
em pequenos
pássaros
sobre a mesa
Caminhante. É o livreto que encerra a publicação e guarda um tom inconcluso, onde a paisagem se funde com a própria contemplação. Em caminhante alguns opostos se constelam: peso e leveza; repouso e ação; construção e desconstrução; repetição e paixão. Caminhante, aqui, é visto como aquele que passa, que se torna filho do tempo através de um olhar poético.
o caminho é tudo que levo
às vezes, sigo por aí feito
poeira sem vento, outras,
feito andorinha no fio
repouso
o caminho a inventar
o caminhar
o caminho é tudo
que leve se ausenta
Rita Balduino - O feito afaga o gesto - Editora Patuá |
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