Mauro Paz - Entre Lembrar e Esquecer

Literatura brasileira contemporânea
Mauro Paz - Entre Lembrar e Esquecer - Editora Patuá - 110 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação: Rodrigo Sommer - Lançamento: 2017.

Em abril de 2013, Eduardo Vinícius Fösch dos Santos, 17 anos, se despediu dos pais, da irmã e partiu para uma festa em um condomínio de luxo da zona sul de Porto Alegre, na qual era o único convidado negro. Ele nunca mais voltou. Eduardo foi encontrado no dia seguinte, no pátio de uma casa vizinha, quase inconsciente e levado ao hospital onde, depois de nove dias internado, não resistiu aos efeitos das lesões recebidas durante a festa. Na época, a Polícia Civil concluiu o apressado inquérito como acidente, Eduardo teria caído sozinho de um muro que separa as duas casas. No entanto, a família do jovem surfista e skatista não se conformou e procurou um perito particular, fazendo com que o caso fosse reaberto com a conclusão óbvia do Ministério Público, Eduardo foi assassinado.

Esse caso real motivou Mauro Paz a escrever o romance Entre Lembrar e Esquecer, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2018, transformando em ficção a agressão brutal cometida contra o jovem negro, fato tão comum nos noticiários policiais de todo o país. No entanto, o livro tem outros méritos além da importante denúncia social. Ao utilizar uma narrativa veloz em primeira pessoa, quase cinematográfica, o autor descreve as memórias de Cesar, um protagonista negro, jornalista, que mora em São Paulo há alguns anos e retorna a Porto Alegre para o enterro do sobrinho Carlos Eduardo, Cadu (inspirado em Eduardo Fösch). O parágrafo de abertura é um bom exemplo da prosa direta que será utilizada ao longo do romance.
"Depois de mudar para São Paulo, sempre que o telefone vibrava e na tela surgia o número da casa de minha mãe, eu esperava uma notícia de morte. Numa tarde de setembro a notícia chegou. Ao contrário da ordem natural do tempo, não trouxe o nome de nenhum dos meus pais. Cadu, meu sobrinho de dezessete anos, estava morto. E eu preso em um táxi na marginal Pinheiros sem saber o motivo. Sem saber o que dizer ao meu irmão. Sem saber qual caminho indicar para o taxista se livrar do trânsito. Eu só sabia que precisava embarcar no primeiro voo para Porto Alegre e encontrar Cadu pela última vez." (p. 9)
O reencontro com a família, principalmente o irmão Douglas, pai de Cadu, desperta lembranças que Cesar lutava para esquecer da sua infância e adolescência em Porto Alegre, o tempo em que estudou, juntamente com o irmão, em uma escola particular de freiras como bolsistas, onde eram os únicos negros e sofriam todo tipo de perseguições e preconceitos. Afinal, "para manter a sanidade, é preciso o equilíbrio entre lembrar e esquecer. Jogar com a memória como dois pratos de balança."  As relações entre os dois irmãos, que nunca foram das melhores, serão definitivamente cortadas por Douglas que discorda radicalmente quando Cesar insiste em investigar as condições suspeitas da morte de Cadu, juntamente com a cunhada Jussara.
"A máquina de costura elétrica e uma estante de madeira deixavam ainda menor o quarto que anos antes eu e Douglas dividimos. Do beliche, sobrou uma cama para receber visitas. Quantas noites olhei para o teto branco recortado pela luz vazada da persiana? Quantas vezes projetei ali a viagem pelos Andes que nunca aconteceu? Ou como eu chegaria em alguma guria? Ou as palavras certas para terminar com Marcela, minha primeira namorada? Quantas vezes projetei naquele teto branco trabalhar nos Estados Unidos para juntar dinheiro e, perto dos trinta anos, estar de volta ao Brasil, comprar uma casa e ter um filho ou dois? Olhar para o teto quinze anos depois de sair de casa e meio metro mais baixo, por conta da retirada da segunda cama do beliche, fez de mim um estranho.Paralisado. Como uma criança que passa a noite na casa de um amigo e, mesmo apertado, não levanta para ir ao banheiro que fica no outro lado do corredor. E mesmo que levante e vá ao banheiro, não dá a descarga para não acordar os moradores da casa." (p. 26)
Aos poucos o leitor entende as causas da crise pessoal de Cesar no tempo presente, que vai tomando proporções de autodestruição à medida que a tragédia familiar, provocada pela morte do sobrinho, invade todos os espaços somando-se a uma crise pessoal em São Paulo, devido à perda do emprego e o abandono pela namorada. A vida de Cesar fica totalmente fora de controle, levando-o à dependência do álcool para conseguir manter o frágil equilíbrio da balança que oscila entre lembrar e esquecer. Viver com as nossas memórias nem sempre é fácil.
"Entender a morte dói, mas é bem mais simples do que entender a vida. Como se explica a força que liga uma mãe a um filho? Como se explica as diversas formas de poder e ódios entre seres da mesma espécie? Como se explica que, com o passar do tempo, algumas lembranças se apaguem e outras permaneçam nítidas? Como se explica algumas pessoas desapareçam sem deixar rastro? Para entender a morte, você só precisa do tempo de um dedo indicador esmagar o corpo crocante de uma formiga. Ao contrário da vida, a morte é instantânea. Direta. Essencial. Como diria Douglas, a morte é a lei." (p. 76)
Literatura brasileira contemporânea
Mauro Paz nasceu em Porto Alegre, em 1981. Redator Publicitário. Formado em Letras, passou pela Oficina de Escrita Criativa, de Luiz Antônio de Assis Brasil. Em 2009, mudou para São Paulo. No ano seguinte, o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul publicou o primeiro livro de contos do autor, "Por Razões Desconhecidas". Em 2014, seu segundo livro de contos, escrito em parceria com Tiago Morales, "São Paulo — Cidade Expressa", foi publicado pela Editora Patuá. Além de participação em diversas antologias de contos, o autor mantém o projeto #instacontos, que mistura fotografias com mini narrativas. Este é seu primeiro romance, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.

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