Fabio Bensoussan - Retorno a muestro lugar
A Primeira Guerra Balcânica, em 1912, mudou para sempre a vida da pequena cidade de Kirklisse na Trácia otomana que, na época, contava com uma população de pouco mais de 30.000 habitantes, formada por uma maioria de muçulmanos, seguida por gregos e búlgaros ortodoxos e, finalmente, uma minoria composta por trezentas famílias de origem judaica sefaradi, quando foi ocupada pela Bulgaria e, posteriormente, pela Grécia. Esses eventos levaram à dissolução do Império Otomano, já em franca decadência, concretizada na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Kirklisse foi retomada pela Turquia em 1923 e hoje é uma cidade anexada à República da Turquia, chamada Kirklarelli. Tudo isso faz parte da História, contudo, em seu livro de estreia, Fabio Bensoussan está menos interessado na História e sim nas histórias perdidas de seus familiares que emigraram para o Brasil em 1920.
O interesse do autor no resgate deste passado fragmentado se concentra, em especial, no que aconteceu ao único parente que permaneceu na cidade na época, tentando reunir o pouco que se sabe com base em relatos orais e escassos documentos físicos. Como parte do esforço para viabilizar esta obra, Fabio viajou para a Turquia em 2018 e, para entender o passado de sua famíla no contexto da cidade, ele se orientou por meio de uma improvável cartografia, um cartão-postal da antiga Kirklassi, que é uma foto tirada de uma vista superior na qual vemos uma rua do bairro judeu, ladeada por árvores e edifícios de cada lado, na qual os habitantes – homens, mulheres e crianças – estão vestidos na tradição otomana, distribuídos ao longa da rua, imagem de capa desta edição.
"Acabo de chegar a Kirklareli. Estou a duas horas e meia de carro de Istambul e a uns quinze minutos da Bulgária. Do meu quarto, no sétimo andar do Hotel Lozengrad, procuro uma antiga cidade otomana onde, há mais de um século, vivia uma importante comunidade sefaradi: cerca de trezentas famílias em meio a uma população de quarenta mil habitantes, entre turcos, gregos e búlgaros – além de ciganos e armênios. Olho para baixo e vejo um grande jardim e um café, de um lado, e os fundos de um banco, do outro. E, claro, várias bandeiras turcas. / Teho comigo uma foto antiga, um postal, que estava nas coisas do apartamento da minha avó em Copacabana. Na verdade, uma foto da foto, que é hoje facilmente encontrada numa pesquisa no Google. Vue de Kirklissé – Grand quartier israélite. É tudo o que diz." (p. 21)
O livro de Fabio Bensoissan não é um romance, tampouco um livro de História, mas podemos considerá-lo como um belo exemplo de literatura, prova disso é a declaração do próprio autor no posfácio optando pela intuição: "[...] nas vezes em que essas histórias colidiram com alguma versão da História, optei pelas primeiras, claro." A impossibilidade de reconstituir este passado perdido é bem definida também na ótima introdução de Fernando Klabin: "[...] A perplexidade diante dos mapas que não se encaixam dura pouco, é necessário ir em frente e contar, mas ela contamina o texto como uma corrente subterrânea que mergulha todo o discurso no tom menor. A imagem do cartão-postal centenário que abre e fecha a obra, encerra em si essa melancolia irreversível de um passado que não só foi perdido pela memória, mas também destruído pelos horrores da História."
"Essa história começa em Kirklisse, na Trácia otomana. Já foi uma cidade no centro de um império que bateu às portas de Viena. Em 1912, era uma cidade de fronteira, próxima à Bulgaria. Havia um império muçulmano que ainda dominava um pedaço da Europa. Havia um Sultão, mas também Jovens Turcos, nacionalistas. Havia uma civilização judaica sefaradi e havia Salônica, que era para a época o que Nova York é para os judeus de hoje. Havia pogroms a poucas horas dali. E, como disse Philip Roth, ainda não existia Israel, e seis milhões de judeus europeus ainda não haviam deixado de existir. [...] Meu desafio é, como um arqueólogo, desbravar esse sítio que está, sou obrigado a admitir, muito mais na minha cabeça que na terra.[...]" (pp. 25-6)
A cidade que passou por tantos nomes ao longo do tempo, entre eles: Kirklisse, Lozengrad e Kirklareli, convivia também "com duas, três ou quatro línguas diferentes, em dois, três ou quatro alfabetos inconciliáveis", o título do livro remete ao ladino, ou judeo-español, uma língua um pouco perdida também, falada dentro das casas, "espanhol com letras hebraicas" como definido pelo autor. A obra de Fabio Bensoussan é importante, entre outras coisas, porque valoriza a memória e podemos ter a ilusão de que é possível aprender com ela, evitando assim a repetição dos erros do passado. Como seria bom se isso fosse possível, mas vale a pena tentar.
"Todos os judeus de Kirklisse falavam o ladino, mas as coisas começavam a mudar no início do século passado. A Aliança Universal Israelita, com sede em Paris, tinha por missão ocidentalizar os judeus otomanos, torná-los verdadeiros europeus, aptos à vida do promissor século XX, e para isso era necessário combater certas tradições e modificar o currículo. A língua do futuro é o francês, como todos sabiam naquele momento. O ladino e o hebraico simbolizavam o atraso, impediam o progresso intelectual. / Para muitos conservadores, a simples presença de uma escola da Aliança na cidade já era afronta suficiente – como admitir uma escola com um professor que não fosse um rabino? / A Aliança tentou levar para Kirklisse o Iluminismo francês. O Ocidente estava de braços abertos para receber os filhos da comunidade. Naquela época, pelo menos, era o que o Ocidente acreditava – e os sefaradis também." (p. 47)
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