Luis Fernando Verissimo - O clube dos anjos
O livro, lançado originalmente em 1998 pela Editora Objetiva, é o terceiro volume da série Plenos Pecados, inspirada nos sete pecados capitais, foi relançado em 2019 pela Alfaguara e adaptado para o cinema neste ano, filme integrante da seleção do 50º Festival de Cinema de Gramado, com Direção e Roteiro de Angelo Defanti e elenco formado por: Otávio Muller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira, André Abujamra, César Melo, Ângelo Antônio, Samuel de Assis e António Capelo. Uma ótima oportunidade para reler a novela de Luis Fernando Verissimo em seu estilo sempre leve e bem-humorado, mesmo ao tratar de temas mais sensíveis, como notamos com a opção por uma falsa epígrafe: "Todo desejo é um desejo de morte" - Possível máxima japonesa.
Dez amigos se conhecem desde a adolescência, "todos mais ou menos da mesma idade e todos mais ou menos ricos" na descrição do narrador-protagonista Daniel, acrescento ainda: todos representantes de uma masculinidade ultrapassada e cada um fracassado na vida a seu próprio modo. O grupo criou a tradição de se reunir em diferentes restaurantes para degustar da boa mesa e do bom vinho, evoluindo para reuniões mensais na casa de cada um e fundando o "Clube do Picadinho". Contudo, devido aos desentendimentos entre eles, além da morte de Ramos, um dos fundadores, os encontros pareciam ter chegado a um melancólico final. A chegada de um talentoso cozinheiro irá reavivar a confraria, mas há um fato novo agora, depois de cada reunião um integrante amanhece morto.
"No início, não era apenas o prazer de comer, beber e estar juntos que nos unia. Havia a ostentação, sim. Depois que trocamos o picadinho do Alberi por coisas mais finas, nossos jantares passaram a ser rituais de poder, mesmo que não soubéssemos então. Podíamos comer e beber bem, por isso comíamos e bebíamos do melhor e fazíamos questão de ser vistos e ouvidos no exercício do nosso privilégio. Mas também não era só isso. Não éramos só filhos da puta. Éramos diferentes, e festejávamos a nossa amizade e a nossa singularidade naquelas celebrações barulhentas de um gosto comum. Tínhamos um discernimento superior da vida e dos seus sabores, o que nos unia mesmo era a certeza de que nossa fome representava todos os apetites que um dia nos dariam o mundo. Éramos tão vorazes, no começo, que qualquer coisa menos que o mundo equivaleria a um coito interrompido. Queríamos o mundo, acabamos como fracassados municipais, cada um na sua merda particular. [...]" (p. 14)
Lucídio é o nome do misterioso cozinheiro que declara pertencer a uma sociedade secreta no Japão, se reunindo uma vez por ano para comer o fugu recém-pescado (conhecido no Brasil como baiacu), um peixe venenoso que se não for preparado por um especialista, pode matar em minutos. Daniel convida Lucídio para cozinhar em uma nova reunião do Clube do Picadinho, depois de provar a omelete que este aprendera a fazer em Paris: "Tostada só até o ponto da perfeição por fora, úmida por dentro, espalhando-se no prato com a consistência de uma baba dos deuses." E, depois de alguma relutância dos amigos, é marcado o encontro à base de bouef bourguignon, preferência de Abel, o primeiro a morrer depois do jantar, muito elogiado por um discurso de um dos confrades, o próprio Abel.
"Todo o jantar foi uma maravilha. Depois dos canapés, fundos de alcachofra ao vinaigrette. E quando eu trouxe o boeuf bourguignon da cozinha, provocando um 'Meu Deus do céu' do Abel ao avistá-lo, fui recebido com uma ruidosa reivindicação da mesa entusiasmada. Queriam saber quem era o cozinheiro misterioso. Contei quem era o Lucídio, ou o pouco que sabia delxee. Nosso encontro na loja de vinhos. A sua omelete perfeita, que me levara a aceitar sua oferta de cozinhar para o grupo. E a sua história do fugu e da sociedade secreta. Alguém disse 'Esse cara não existe, você está inventando!'. Paulo disse que tinha lido alguma coisa sobre a tal sociedade, mas num livro de ficção. 'História', disse Pedro, com a boca cheia de carne. 'O cara está te gozando.' Tiago disse que o Lucídio podia ser um farsante, podia até ser uma invenção minha, mas era um grande cozinheiro. Marcos disse 'O homem é um gênio!' e insistiu que o trouxesse da cozinha para ele provar que existia e receber os aplausos do grupo. 'Calma, calma', respondi, sem qualquer intenção de sair do meu lugar antes de terminar o que era o melhor boeuf bourguignon que já tinha provado na vida. Abel mastigava de olhos fechados. Mais de uma vez repetiu 'Meu Deus do céu' e, quando terminou de comer, declarou solenemente 'Eu agora posso morrer', provocando gargalhadas. As gargalhadas mais altas foram do Paulo. O grupo estava reconciliado. Lucídio nos resgatara do fundo." (pp. 41-2)
Com a continuidade das reuniões, fica claro que o preço de saborear a comida predileta deve ser pago com a própria vida. E, apesar das mortes, os encontros continuam a ser celebrados pelo grupo de amigos, cada vez mais reduzido. Afinal, por que estes homens continuam retornando aos jantares? Uma das possíveis explicações pode estar na compulsão da gula e na iminência da morte que parece motivar aqueles homens fracassados em suas vidas, nas palavras de Ramos: "Não é todo dia que se quer ver um pastoso Van Gogh ou ouvir uma crocante fuga de Bach, ou amar uma suculenta mulher, mas todos os dias se quer comer, a fome é o desejo reincidente, pois a visão acaba, a audição acaba mas a fome continua [...]"
"Nossa passagem ritual da adolescência para a maturidade se dera na mesa de um restaurante, quando Ramos nos explicara por que a carne bem passada deixava o reino das iguarias e entrava no reino das utilidades, como a sola de sapato. O que foi uma revolução na vida de Abel, nosso piedoso assador. Segundo Samuel, foi ali que Abel começou a perder a fé. A revelação da superioridade do cru sobre o muito cozido funcionou como uma catequese ao contrário para Abel. Havia uma incompatibilidade intrínseca entre a carne malpassada e a metafísica, e Abel optara pela carne sangrenta. / Não sei se o André estava muito interessado na minha recapitulação afetiva ou se só queria mostrar seu sentimento pela morte do Abel. Depois que descobrira que nós não éramos, afinal, 'le crème de le crème' ele não se interessava pelas nossas histórias e demonstrava até uma certa repulsa física, pelo esquerdismo histriônico do Paulo, pela decomposição do Samuel e pela minha barriga, nessa ordem decrescente de horrores. Agora lamento que não o deixei falar mais, naquela noite, enquanto esperávamos os outros e, na cozinha, Lucídio preparava a última paella da sua vida." (p. 55)
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