Geny Vilas-Novas - Fazendas ásperas

Literatura brasileira contemporânea
Geny Vilas-Novas - Fazendas ásperas - Editora 7 Letras - 216 Páginas - Lançamento: 2017.

Ao iniciar este texto, enfrento o primeiro impasse de todo resenhista que precisa apresentar informações objetivas ao leitor e, por este motivo, é sempre um escravo dos enquadramentos, fico com a seguinte dúvida: como resumir o gênero literário da mineira Geny Vilas-Novas? Memorialismo, autobiografia, romance de ficção ou prosa poética? Talvez um pouco de tudo isso em uma estrutura narrativa que oscila todo o tempo entre a primeira e a terceira pessoa, presente e passado, regional e universal. Bem, já se percebe que temos aqui um autêntico exercício de literatura na melhor tradição de outros grandes escritores de Minas Gerais.

A autora, que é também a protagonista na imagem da "Mãe rainha do lar", e tem na Literatura o seu refúgio, trabalha com um núcleo de personagens no presente, formado pelo "Pai" (na verdade, o marido), a "Nora de Olhos Oblíquos e Cor de Ônix", a "Filha de Olhos Cor de Esmeralda" e o "Filho" (sem adjetivos, apenas a identificação da letra maiúscula) em contraponto com outro grupo de personagens familiares do passado, iniciando com os seus pais, "lapidados em gemas raras", e chegando até a origem genealógica da família no Brasil a partir dos trisavós vindos de Portugal.  A protagonista escreve sobre a própria família, sabendo que "todo escritor é mentiroso", ligando o passado com o presente e citando também fatos muito recentes da história brasileira, como o terrível assassinato ecológico do Rio Doce, ponto de referência da autora no mundo, para quem o livro é dedicado.
"Falar dos mortos é mais fácil, o problema são os vivos. Deus dá livramento. Não tenho paciência de pesquisador, sou voraz. Não sei apalpar, ou entro em um personagem e arrisco tudo, ou não toco no assunto. Vou contado a saga da família. Tudo é ficção, nada é oficial. São todos obscuros personagens. Existe um momento em que, se eu não escrevesse, a vida seria insuportável. Escrever exige distanciamento, e quando a emoção chega, ela já aparece decantada. Como se fosse um segundo plano, envolta em nuvens e bem camuflada. O corpo precisa estar entorpecido e os fatos não nos pertencem mais. São apenas palavras loucas, histórias difusas e irresponsáveis." (Pág. 36)
A técnica de Geny Vilas-Novas, parte do pressuposto de que "escrever bem não é suficiente", que "não basta usar as técnicas, como se fossem receitas de bolo. Escrever é maior do que isso. Exige uma história, e essa história tem que ser imperiosa, e 'ditar' com rigor como irá para o papel. E o papel é obrigado a iluminar-se, em contato com as palavras". Assim é que a Mãe, rainha do lar e "caçadora de palavras", vai contando uma série de histórias dos tios, primos e avós, algumas vezes acontecimentos trágicos, outras vezes momentos alegres da infância, mas sempre revelando muita intimidade com tudo que é humano e utilizando no texto imagens da mais pura poesia, como no trecho abaixo.
"Com os pais, lapidados em gemas raras, agora a Mãe só fala em sonhos e em lembranças. Moravam em uma casinha de vidro, no alto da colina, no Sítio de Cima. O riacho de cristal líquido corria vagaroso ou apressado. Se vagaroso, fazia remansos, marolas, cantarolava em cascatinhas e desaguava no Rio Doce e o Rio Doce corria com ele para o mar. Os raios de sol poente refletiam nas águas do Doce, e as transformavam em ouro líquido. Peixinho Dourado e a Mãe brincavam com aquelas águas sem pressa de chegar ao mar." (Pág. 37)
Os capítulos são introduzidos por epígrafes constituídas por haikais do poeta japonês Matsuo Basho (1644-1694), uma ponte inusitada entre o Japão feudal e o interior de Minas Gerais, mas que revela-se muito apropriada pelo uso da natureza como tema literário. Algumas vezes o lirismo da narrativa é interrompido por choques de realismo como o já citado atentado ao Rio Doce pela enxurrada de lama tóxica gerada pela indústria de mineração ou, até mesmo, o fenômeno da diáspora internacional, representado pelos refugiados da Síria que continuam sendo sepultados nas águas do Mar Mediterrâneo, mostrando que a vida também é isto e que, por vezes, seria melhor "ter uma pedra no lugar do coração".

A autora sabe que é preciso continuar contando as nossas histórias, o nosso legado familiar, mesmo sem o "ouro líquido" das águas do Gigante Rio Doce, continuar buscando o que ainda existe de bom na humanidade. E a literatura certamente é uma dessas coisas que podem justificar a vida e a teimosa permanência do nosso coração no lugar de uma pedra.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 melhores utopias da literatura