Roberto Bolaño - A Universidade Desconhecida - Editora Companhia das Letras - 832 Páginas - Tradução de Josely Vianna Baptista - Capa: Raul Loureiro - Imagem de capa: Paisagem com caminho, de Rodrigo Andrade, 2019 - Lançamento: 2021.
Roberto Bolaño (1953-2003) se tornou mundialmente conhecido após o lançamento de seus monumentais romances 2666 e Os detetives selvagens. 2666, por exemplo, foi publicado postumamente na Espanha em 2004 e alcançou um tremendo êxito editorial após a tradução americana, lançada nos EUA em 2008, eleito o livro do ano pela Time Magazine e vencedor do National Book Critics Award daquele ano, elevou o autor chileno (e que então todos imaginavam ser mexicano) à categoria de mito literário, comparado somente aos escritores da geração beat.
Tanto sucesso na prosa ofuscou o talento de Roberto Bolaño como poeta, apesar dele ter mantido uma produção constante de poesia por toda a vida, refletindo a solidão do exílio e a aproximação da morte prematura, como fica claro no poema inédito Minha carreira literária de 1990: "[...] como uma cobra no Polo Norte, mas escrevendo. / Escrevendo poesia no país dos imbecis. / Escrevendo com meu filho nos joelhos. / Escrevendo até que a noite caia / com um estrondo de mil demônios. / Os demônios que hão de levar-me ao inferno, / mas escrevendo."
A Unversidade Desconhecida foi publicado originalmente em 2007 por autorização da famíia a partir de fotocópias de manuscritos datilografados, reunindo poemas selecionados pelo próprio autor do período entre 1978 e 1998, segundo a esposa Carolina López. Este livro, agora em uma cuidadosa versão biíngue, não poderia ser uniforme, enquanto alguns poemas merecem constar em qualquer compilação da poesia mundial recente e nos fazem chorar de emoção, outros são quase incompreensíveis, praticamente rascunhos em forma de prosa.
No entanto, trata-se de uma obra indispensável para entendermos a obra de Roberto Bolaño, um escritor que pode ser identificado nestes versos de Os anos (p. 741): "[...] Um vagabundo / Um passaporte amassado e manuseado e um sonho / que atravessa postos de fronteira / afundado no pântano de seu próprio pesadelo / Um trabalhador temporário / Um santo selvagem / Um poeta latino-americano distante dos poetas / latino-americanos / Um sujeito que transa e ama e vive aventuras agradáveis / e desagradáveis cada vez mais longe / do ponto de partida [...]"
Poeta chinês em Barcelona
(Primeira parte - O romance-neve - p. 41)
Um poeta chinês pensa ao redor
de uma palavra sem chegar a tocá-la,
sem chegar a olhá-la, sem
chegar a representá-la.
Atrás do poeta há montanhas
amarelas e secas varridas pelo
vento,
chuvas ocasionais,
restaurantes baratos,
nuvens brancas que se fragmentam.
O dinheiro
(Primeira parte - Nada de mau vai me acontecer - p. 233)
Trabalhei 16 horas no camping e às 8
da manhã tinha 2200 pesetas apesar de ganhar
2400 não sei o que fiz com as outras 200
acho que comi e bebi cervejas e café com
leite no bar do Pepe García dentro do
camping e choveu na noite de domingo e toda
a manhã de segunda e às 10 fui atrás de
Javier Lentini e recebi 2500 pesetas por uma
antologia de poesia jovem mexicana que
vai sair em sua revista e já tinha mais de
4000 pesetas e decidi comprar um par de
fitas virgens para gravar Cecil Taylor
Azimuth Dizzie Gillespie Charlie Mingus
e comer uma boa bisteca de porco
com tomate e cebola e ovos fritos e escrever
este poema ou esta nota que é como um pulmão
ou uma boca transitória que diz que estou
feliz porque há muito tempo eu não tinha
tanto dinheiro no bolso
Sem título
(Primeira parte - Nada de mau vai me acontecer - p. 297)
Agora você passeia solitário pelos molhes
de Barcelona
Fuma um cigarro forte e por
um momento pensa que seria bom
que chovesse
Dinheiro os deuses não lhe concedem
mas caprichos estranhos sim.
Olhe para cima:
está chovendo.
A poesia latino-americana
(Segunda parte - Manifestos e posições - p. 533)
Uma coisa horrível, cavalheiros. A vacuidade e o espanto.
Paisagem de formigas
No vazio. Mas no fundo, úteis.
Vamos ler e contemplar sua reflexão diária:
Lá estão os poetas do México e da Argentina, do
Peru e da Colômbia, do Chile, do Brasil
E da Bolívia
Empenhados em suas áreas de poder,
Em pé de guerra (permanentemente), dispostos a defender
Seus castelos da investida do Nada
Ou dos jovens. Dispostos a pactuar, a ignorar,
A exercer a violência (verbal), a fazer desaparecer
Das antologias os elementos subversivos:
Alguns velhos caducos.
Uma atividade que é o reflexo fiel de nosso continente.
Pobres e fracos, nossos poetas são
Os que melhor encenam essa contingência.
Pobres e fracos, nem europeus
Nem norte-americanos,
Pateticamente orgulhosos e pateticamente cultos
(Embora valesse mais a pena aprender matemática ou mecânica,
Valesse mais a pena arar e semear! Valesse mais a pena
Dar uma de putos e de putas!),
Pavões recheados de peidos dispostos a falar da morte
Em qualquer universidade, em qualquer balcão de bar.
Somos assim, vaidosos e lamentáveis,
Como a América Latina, estritamente hierárquicos, todos
Na fila, todos com nossas obras completas
E um curso de inglês ou francês,
Fazendo fila nas portas
Do Desconhecido:
Um Prêmio ou um pontapé
Em nossas bundas de cimento.
Epílogo: E um e dois e três, meu coração está triste, e quatro e cinco e seis,
pois se quebrou de vez, e sete e oito e nove, chove, chove, chove...
Autorretrato aos vinte anos
(Terceira parte - Minha vida nos tubos de sobrevivência - p. 633)
Me deixei levar, saí andando e nunca soube
para onde poderia me levar. Estava cheio de medo,
o estômago doía, a cabeça zunia:
acho que era o ar frio dos mortos.
Não sei. Me deixei levar, pensei que era uma pena
acabar tão depressa, mas, por outro lado
escutei aquele chamado misterioso e convincente.
Ou você o escuta ou não o escuta, e eu o escutei
e quase comecei a chorar: um som terrível,
nascido no ar e no mar.
Um escudo e uma espada. Então,
apesar do medo, me deixei levar, pus minha face
junto à face da morte.
E me foi impossível fechar os olhos e não ver
aquele espetáculo estranho, lento e estranho,
ainda que embutido numa realidade velocíssima:
milhares de rapazes como eu, imberbes
ou barbudos, mas todos latino-americanos,
juntando suas faces com a morte.
Retrato em maio, 1994
(Terceira parte - Um final feliz - p. 809)
Meu filho, o representante das crianças
nesta costa abandonada pela Musa,
hoje completa entusiasta e tenaz quatro anos.
Os autorretratos de Roberto Bolaño
voam fantasmagóricos como as gaivotas na noite
e caem a seus pés como o orvalho cai
nas folhas de uma árvore, o representante
de tudo o que poderíamos ter sido,
fortes e com raízes no que não muda.
Mas não tivemos fé ou a tivemos em tantas coisas
finalmente destruídas pela realidade
(a Revolução, por exemplo, essa pradaria
de bandeiras vermelhas, campos de pastagem fértil)
que nossas raízes foram como as nuvens
de Baudelaire. E agora são os autorretrados
de Lautaro Bolaño que dançam numa luz
ofuscante. Luz de sonho e maravilha, luz
de detetives errantes e de boxeadores cujo valor
iluminou nossas solidões. Aquela que diz:
sou a que não evita a solidão, mas também sou
a cantora da caverna, a que arrasta
os pais e os filhos para a beleza.
E nisso eu confio.
Sobre o autor: Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile, e é considerado um dos grandes nomes da literatura mundial. Passou a adolescência no México e voltou ao seu país pouco antes do golpe que depôs Salvador Allende. Em 1977, instalou-se na Espanha, onde começou sua carreira literária. Morreu de insuficiência hepática, na cidade de Barcelona, em 2003.
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