Carla Bessa - Minha Murilo
O mais recente lançamento de Carla Bessa é uma novela que mantém a urgência e a força dos contos do premiado Urubus (Jabuti de 2019). Em Minha Murilo, a autora aborda a questão de gênero e identidade em um thriller sobre sequestro no qual vítima e agressor estabelecem entre si uma relação de dependência muito além da identificação emocional entre sequestrado e sequestrador, tão característica da Síndrome de Estocolmo. Neste livro, o leitor acompanha o processo de desconstrução ou transformação dos personagens para sobreviver a um passado de violência e inadequação familiar.
Sasha é uma travesti que faz ponto nas ruas da Glória no Rio de Janeiro. Ela é sequestrada por um homem solitário que construiu um cativeiro em um porão de sua casa: "Sasha está sentada numa poltrona e entreabre as pálpebras inchadas com esforço. Um líquido espesso escorre do seu nariz. A visão é parca. A pouca claridade se esgueira por frestas e arestas ou por baixo de portas. Os olhos se habituam aos poucos à falta de luz. Ela vira a cabeça dolorida e vê a silhueta de um homem sentado à sua frente." Assim tem início a narrativa veloz e cinematográfica que surpreende a cada revelação e prende o leitor até o final.
"Agora, está com trinta e cinco anos, mas na verdade Sasha é bem mais jovem do que aquele corpo. Faz exatos vinte anos que se decalcou do corpo de Murilo. Teve que esperar a mãe morrer, a mãe que tanto amava, teve que enterrá-la para que pudesse trocar de pele. Foi ao velório ainda como homem, mas puxando atrás de si uma mala. Nela, estava a Sasha. Sepultou a mãe e o Murilo na mesma cova. Não voltou para casa. O pai se admirou e a última imagem que tem dele é a de um homem velho e abatido, de pé embaixo do portal com os dizeres 'Aqui todos são iguais'. Quando ele a viu saindo do banheiro feminino da lanchonete que ficava em frente ao cemitério, chegou a pôr a mão no cinto, mas não conseguiu nem chamar o filho pelo nome. Em todo caso, ela já não mais atenderia."
Ao longo do sequestro Sasha vai retomando aos poucos a sua antiga identidade como Murilo, assim como seu corpo original que perde as caracterísitcas femininas. Um relacionamento confuso e instável se estabelece entre os dois personagens e os papéis de vítima e agressor começam a se inverter em um jogo psicológico muito bem construído por Carla Bessa que escapa dos clichés do cinema ao conduzir a narrativa com segurança até o final inesperado.
"Ela vive com fome. Aprendeu a desenvolver estratégias para se alimentar melhor. Consegue distraí-lo por alguns segundos, nos quais enfia rapidamente algo na boca. Engole sem mastigar, como os lobos ou os mendigos. Devora. Um instinto animal para comer mais e mais rápido quando não se sabe da próxima refeição. Outro truque é aliciá-lo, seduzi-lo a beber álcool ou deixá-lo confuso com alguma pergunta. Hoje ele abriu uma garrafa de vinho, que toma sozinho, naturalmente. Ela o anima a beber. Já está na terceira taça, quando ela começa a beliscar direto da panela e ele nem nota. Depois do jantar, está levemente embriagado. Diz para ela arrumar toda a cozinha e fica observando e bebendo. Ela trabalha o mais devagar possível. Quando termina, a garrafa está quase no fim e ele, completamente bêbado. É como um abismo. Ela se movimenta com cautela na beirada entre a raiva e o carinho do homem."
Sobre a autora: Estudou teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Em1991 emigrou para a Alemanha onde trabalhou por 15 anos como atriz e diretora de teatro. Hoje, vive entre Berlim e Rio e trabalha como tradutora literária alemão-português do Brasil e escritora. Traduziu importantes nomes da literatura contemporânea alemã para as editoras brasileiras. Como autora, publicou dois livros de contos: em 2017, Aí eu fiquei sem esse filho (Oito e meio) e em 2019, Urubus, pela Confraria do vento. Em 2020, Urubus ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Contos e ficou em 2° lugar no Prêmio Biblioteca Nacional. Além disso, publicou contos em antologias e revistas na web e escreve regularmente resenhas para o Jornal Rascunho e para a Capitolina Revista.
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