Fernando Pessoa - Poesia completa de Alberto Caeiro
Fernando Pessoa, como bem sabemos, é um poeta plural, dono de múltiplas personalidades, não escrevendo apenas a partir de nomes fictícios, pois isso seria tão somente exercer o uso de pseudônimos, artifício comum na literatura; mas sim a partir de heterônimos com diferentes estilos e personalidades imaginárias, dotadas de vidas – e também mortes – próprias. Entre os heterônimos mais conhecidos podemos destacar Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Fernado Pessoa define algumas das características de cada uma das identidades: "pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida". Já o guarda-livros Bernardo Soares é definido como um "semiheterônimo" pelo próprio Pessoa "porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela."
De fato, Alberto Caeiro, que surgiu em março de 1914, quando Pessoa tinha 25 anos, é considerado o mestre dos outros heterônimos e representa um exercício de despersonalização porque, ainda segundo Fernando Pessoa: "nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase nenhuma." Toda a obra de Caeiro é uma Ode à Natureza, considerando a sensação como a única realidade, não o pensamento racional. Caeiro, assim como Spinoza, acreditava em um Deus que não é o Deus humanizado das religiões, mas o Deus Natureza que está além do bem e do mal. Esta edição reúne toda a obra de Alberto Caeiro, constituída por três conjuntos de poemas: "O guardador de rebanhos", "O pastor amoroso" e "Poemas inconjuntos", assim como notas, imagens dos originais e ensaios de especialistas na obra de Fernando Pessoa, tais como: Leonardo Fróes, Fernando Cabral Martins e Ricardo Zenith. Um clássico da literatura e indispensável em qualquer biblioteca.
O guardador de rebanhos
(Poema I - Alberto Caeiro)
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
O pastor amoroso
(Poema I - Alberto Caeiro)
Poemas Inconjuntos
(Quando tornar a vir a primavera - Alberto Caeiro)
Quando tornar a vir a primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
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