Whisner Fraga - Usufruto de demônios
O mais recente lançamento de Whisner Fraga é uma coletânea de minicontos que, já a partir do sugestivo título, demonstra o cuidado do autor com a escolha da palavra exata. Na verdade, os fragmentos de narrativa são impulsionados por um lirismo que nos faz pensar em poesia, como em sacerdócio: "o primeiro sol apanha o homem cerzindo infinitos, conluios, emboscadas, traições, os óculos atracados ao nariz, a esperança requeimada, o primeiro sol veste a cadeira, aduba o sonho, a história entorna letras pelo papel, tudo é virginal e nem sabe se vingará, mas é vivo: ele admite um prenúncio cintilando no vértice da palavra, a coreografia da imperfeição."
Assim como no seu livro anterior, O que devíamos ter feito, o autor utiliza como matéria-prima para a construção de seus contos algumas das nossas mazelas contemporâneas; os impasses existenciais, morais e políticos que se revelaram durante a recente crise da pandemia, temas que não se esgotam facilmente. A literatura de Whisner Fraga é uma espécie de ritual de exorcismo para combater esses demônios que assolam o nosso país na forma de violência, preconceito ou até mesmo indiferença, frente à desigualdade social que isola o crescente número de excluídos nas comunidades carentes em um cruel processo de desumanização.
Percebemos algumas passagens autobiográficas e novamente a figura de Helena, a misteriosa interlocutora e confidente presente em outros livros do autor, assim como uma nova personagem recorrente em alguns contos: uma menina, não nomeada, que simboliza a preocupação com um presente amargo e um futuro incerto, como em a menina que ri: "viver consigo é esse duelo: tateia evidências e quer o mapa das coisas: da benquerença, da euforia, mas só lhe entregam caminhos bifurcados, névoas: ameaça um coque, enlaça os olhos do acaso e descobre proteção e brutalidade: continua calada, porque o silêncio é uma vastidão."
régio
Um conto de Whisner Fraga
a professora sistematiza a escada de crianças: maiores atrás – josé, comprido para a idade, atraca os pés, desobedece: o lugar dele é na frente, o primeiro da fila: naquele momento decide: jamais seguirá os passos de ninguém.
onde estará o pai
Um conto de Whisner Fraga
as oito sacolas biodegradáveis escorregavam da cautela apressada e a mulher insistia, imponente, nos passos até a porta, o menino no encalço, pois só assim podia ser: escoltar a mãe e, às vezes, obedecer – ela estacou defronte à fechadura, transferiu as compras do braço direito para o esquerdo e procurou a chave – eles só pretendiam entrar – recuou a imaginação até o carro, estacionado na rua, imaginou as janelas abertas, a afobação do motor, a brutalidade do vento nos cabelos e experimentou, primeiro o rigor do couro, depois o calafrio do metal, para, repentinamente, pousar uma serenidade naquela avidez – precisava esperar, qualquer coisa aconteceria a partir dali, algo brando, porém abrupto.
nunca se sabe como um assalto pode terminar
Um conto de Whisner Fraga
ele imagina: graças a deus, graças a deus me safei dessa, estou em casa com a esposa, com a filha, graças a deus estamos abraçados esperando a novela começar, mas o revólver ainda está apontado para a testa dele e não descobre o que fazer com o moleque ordenando o dinheiro, o celular, o relógio, ou hoje é o seu dia de morrer, rápido ou aperto o gatilho.
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