Manoela Sawitzki - Vinco
Vinco é um romance de formação diferente – na verdade, mistura de romance de formação e road movie como definido pela autora – ao lidar com temas extremamente contemporâneos, seguindo a trajetória do narrador-protagonista Manu e suas transformações ao longo da vida para escapar da tirania de um sistema de gêneros binário, imposto pela família. Neste ponto há uma certa dificuldade para o resenhista em escolher o pronome, masculino ou feminino, para este(a) personagem que não se define ao longo da narrativa. As transições de Manu são também geográficas, iniciando em um ambiente familiar opressor no Rio de Janeiro dos anos 1990, passando pela vida de clandestino em Paris até uma improvável viagem ao interior pernambucano de Sertão Verde / Tacaratu, sempre um estrangeiro em busca de pertencimento.
A maior parte de sua vida, Manu assumiu no comportamento e na aparência a postura de um homem heterossexual, mas desde cedo percebeu a dualidade que existia em seu corpo quando se escondia para vestir as roupas e bijuterias da mãe, sofrendo com as agressões decorrentes do bullying no colégio ou até mesmo na intimidade da própria família. Manu só encontrou refúgio no acolhimento da libertária avó septuagenária que, após a morte do marido, decidiu aproveitar da melhor forma possível os seus últimos dias para dançar e gastar as economias com os "últimos orgasmos de uma longa vida em que gozar nem sempre foi uma opção", sem se importar com os comentários, aconselhando o neto a assumir suas opções sexuais: "Escute bem o que vou te dizer, Manu: quem é infeliz na cama não consegue ser feliz fora dela."
"Nas rodinhas escolares, os garotos usavam palavras como bicha, viado e sapatão como insultos mesmo antes de terem clareza do que significavam na prática. Sempre haveria um pai, um irmão mais velho, vizinhos, parentes ou um repetente pra nos apresentar ao mundo do seu jeito e ver esse mundo se adensar em nós. Antes de conhecermos mais que uns poucos rudimentos sobre o assunto, todos sabiam que esses insultos tinham a ver com sexo e, sobretudo, que bichas, viados e sapatões eram aqueles que apanhavam mais, os mais avacalhados – consequentemente, os que tinham uma vida pior. Eu sabia disso melhor do que ninguém porque era o que acontecia comigo na escola antiga. / Entre garotos, raramente se admitia desconhecer algo que o resto parecia dominar. Foi assim no caso do Meinha, um moleque atarracado, de cabelos castanhos e pele encardida, sempre descascando, que ganhou aquele apelido na quinta série. O apelido estava lá quando cheguei e devia dizer o bastante, mas não pra mim, o que não me impedia de fingir, porque entendia o básico: implicava algo vergonhoso. Se alguém gritasse 'Meinha!' quando ele chegava ou saía da sala de aula ou do pátio, ou se jogasse uma meia suada na cabeça dele depois da educação física, eu ria com o resto da turma." - Rio de Janeiro (pp. 61-2)
Influenciado pela avó e com o dinheiro herdado após a sua morte, ao completar dezoito anos Manu decide deixar a namorada no Rio de Janeiro e viver em Paris como imigrante ilegal. Neste período, Manu intensifica a dualidade com "Ela" no quartinho miserável que conseguiu com o amigo grego Giorgos, onde pode se travestir com maquiagem, brincos, anéis e unhas postiças em um universo particular que começa a ganhar espaço, mas ainda é clandestino: "Mesmo na privacidade do quartinho, Ela continuava sendo ela. O corpo como uma cama estreita demais para dois. Eu era ao mesmo tempo o cara que podia ser visto por aí carregando as compras do supermercado, arrastando esfregões, e a soma dessas partes que resistiam a se integrar totalmente. E uma vez que não queria me livrar de nenhuma delas, nos virávamos assim e podíamos ate conversar."
"Eu não fazia amigos havia muito tempo. Não entendia bem por que o Giorgos tinha me escolhido, o que via em mim, nem o quanto mais seria capaz de ver à medida que nos tornávamos próximos. Mas a teia do grego era confortável e convidativa. Ele tinha a delicadeza de não me perguntar mais do que eu estava disposto a falar, ou cobrar mais presença do que eu me sentia capaz de oferecer. Quer dizer, estava sempre fazendo perguntas que eu respondia pela metade e convites que eu não aceitava, porque não ligava que o deixassem na mão e se divertia me obrigando a inventar desculpas. Pra ele, a amizade não precisava erodir todos os limites; pelo contrário, ela devia ser um dispositivo de aperfeiçoamento da individualidade. / Pensando agora, essa foi a base da nossa ligação. Assim como o fato de ele nunca ter cogitado voltar a Eubeia, a ilha onde nasceu e de onde escapou quando encontrou o que chamava de oportunidade – o talão de cheques do pai. Esse pai, um segundo-tenente do Exército helênico convertido em sapateiro por um joelho estourado, e que usava solas de coturno pra bater no filho, chamou aquilo de roubo e prestou queixa à polícia. Giorgos já estava longe. Como eu, tinha traído e fugido para sobreviver." - Paris (115-6)
Na última parte do romance, Manu viaja para a cidade de Tacaratu, no interior de Pernambuco, em busca do pai que sempre foi uma presença misteriosa no ambiente familiar e lá, justamente em uma pequena cidade do interior, assume publicamente pela primeira vez o seu lado mulher, encontrando algum tipo de pertencimento. Manoela Sawitzki explica nas notas do livro que o texto é o resultado das suas pesquisas de mestrado e doutorado em torno de identidades de gênero não fixas, em trânsito, dissidentes, e da condição estrangeira. Um livro sensível no qual a literatura, como sempre, nos ajuda a entender o mundo atual e as questões identitárias.
"Sei que os outros moradores da cidade estranharam minha presença naquelas primeiras semanas. A cor desbotada, os caminhos de rato na cabeça, o sotaque ilocalizável, as roupas definidas no corpo indefinido, a careca repentina. E eu tinha decidido não facilitar pra ninguém. Tudo o que era preto, cinza e discreto, quase tudo que eu trazia comigo, ficou guardado na mala enquanto eu me concentrava no guarda-roupa colorido recém-comprado na feirinha. Saias e shorts curtos, blusas estampadas, sandálias. Se ninguém me olhasse torto na rua, voltava pra casa e caprichava mais. Não sentia mais medo e me deixava levar, como a criança que fui antes de entender o funcionamento do mundo. / A notícia de que eu tinha um passado comum com o Doutor se espalhou rápido, assim como a cor sertaneja que herdei dele voltou a vibrar na minha pele. Enquanto isso, os olhos dentro e fora do casario aos poucos me adotaram como mais um elemento da rotina. Se ainda se espantam, conseguem disfarçar. [...]" - Sertão verde / Tacaratu (pp. 223-4)
Sobre a autora: Manoela Sawitzki nasceu em 1978, no sul do Brasil. É escritora, dramaturga e doutora em literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio. É autora dos romances Nuvens de Magalhães (2002) e Suíte dama da noite (2009) – livro lançado também em Portugal e na França – e tem contos incluídos em antologias no Brasil, na Argentina e na França.
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