Ana Cristina Cesar - Cartas a Luiz Augusto
O livro reúne todas as cartas de Ana C. para o namorado Luiz Augusto Ramalho no período de 1969 a 1971 quando ela viajou para um intercâmbio na Richmond County School for Girls, em Londres. A poeta, então aos dezessete anos, escrevia sobre literatura, música, cinema e muitos outros assuntos, influenciada pela rica cena cultural londrina da época. No mesmo período, Luiz Augusto residiu em Aachen, na Alemanha, onde se estabeleceu como exilado político. As cartas originais foram doadas em 2021 por Luiz ao acervo da escritora no Instituto Moreira Salles (IMS) e organizadas pela pesquisadora Rachel Valença que explica na introdução os critérios adotados na transcrição.
Em um tempo nem tão distante assim, no qual ainda existiam cartas e cartões postais, os textos de Ana C. revelam as transformações típicas da adolescência e, principalmente, a sua vocação precoce de poeta mas, ao mesmo tempo, funcionam também como um registro histórico de um Brasil que convivia com a perseguição política e muitas restrições à liberdade de expressão. Complementam este lançamento uma introdução de Luiz Augusto – destinatário das cartas –, textos dos seus irmãos: Flavio Lenz e Luis Felipe Cesar, assim como imagens da correspondência original, fotos inéditas e uma cronologia detalhada da escritora preparada por seu pai, Waldo Cesar.
"Na volta de Londres (depois de ver lojas em Chelsea, ver gente, ver coisas lindas) para Richmond fui SOZINHA no underground (eu estava) (emocionada) que vai mais por cima que por baixo, por cima de parques flores casas flores verdes flores loucuras flores e estava um desses dias enormes, azuis, desnevoados, o sol era um só (te repito) (te amo) e eu te amei como nunca nos jardins atrás do sorriso da Hilary vi o teu o céu era você a cidade era você o balanço do subway era tchutchithu você eu só te via você você. A cidade me despontuava me descabelava mais uma vez e cheguei em sobressalto à estação de Richmond, tomei o 2º andar de um ônibus avermelhado e COMO VOU AGUENTAR TANTA POESIA? As gentes de Richmond vão com as suas espriguiçadeiras pras margens-grama do Thames tomar sol, há verde e cheiro de verde por toda parte. Em casa janelas me esperavam. Entardece diferente em Londres os céus vão baixando devagar o sol se reparte em dois mil sóis se delinea no voo de um pássaro uma esperança novíssima – [...]" Carta de 05/09/69 (p. 61)
Quando fala em amor, Ana C. já faz uso da poesia no seu estilo muito próprio: "Eu te amo todo, toda. Me sinto anormal e manca nesses dias enormes. É, o tempo caiu, perdi o tempo.” (p. 51) ou ainda: "à procura da exata palavra que traga a impressão exata dos momentos mais convulsos. No espelho em busca do rosto depurado em verdade. Na boca um hálito oco, no olho uma secura. Não há espaço para se fechar em desespero. Nem se pode chorar os mais ausentes. Na própria linha do quarto uma linguagem de esquecimento. Adormecem as palpitações de amor e a linguagem de amor adormece. De insônia em insônia, a parede fria e os estalidos das coisas não humanas, mas eu ainda e sempre TE AMO Ana" (p.79).
"As notícias do Brasil! As notícias! Aqui no Catholic Herald saiu que freiras estão sendo torturadas, com nomes. E a carta do teu pai vem terrível. O pessoal de casa não manda detalhes, assumem que eu já sei, ou querem que eu tenha um jolly good time sem a preocupação do detalhe terrível. Mas é inescapável. Luiz, de repente eu realizei que este é o último período da minha vida em que eu posso ler, estudar, sentar perto de uma lareira, ver o Buster imortalíssimo Keaton, me despreocupar, ter insônias quase à toa, eu posso até me dar o luxo de estar mais ou menos à toa e analisar infinitamente os personagens diabólicos de Under Milk Wood. E ler Prévert! Dobro a carta do teu pai. HOJE (28 de novembro) eu vi neve caindo em flocos minúsculos pela primeira vez, no colégio. Ventava e os flocos se embaraçavam e pareciam loucos. Saí e fui para o pátio e esperei a neve me cobrir (I´m retiring from this world) snoopianamente. A neve se derreteu em cima de mim e não embranqueceu nada. Ah, empalidecimentos passageiros e outonais! [...]" - Carta de 28 a 30/11/69 (pp. 159-60)
Infelizmente, a vida da mulher que se tornou uma das poetas mais importantes da sua geração continua sendo um mistério que essas cartas não podem mais desvendar, nelas encontramos a paixão pela literatura e muitos planos para o futuro, mas também alguns sinais da depressão que acabaria levando-a ao suicídio em 1983 com apenas 31 anos. Obviamente, não é um livro recomendado para não iniciados. Contudo, para aqueles que já conhecem a obra de Ana C., é uma grande oportunidade de reencontrar a voz que foi capaz de criar versos assim: "Olho muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo / e sentir separado dentre os dentes / um filete de sangue / nas gengivas" - Ana Cristina Cesar (1952-1983).
"Me sinto pronta para cantar. Minha voz saiu sem escrúpulos. O samba da legalidade. Simples e bom e santo. Me sinto pronta. Fiz uma oração, não era para nenhum deus misterioso e quieto como uma tempestade; mas era uma oração – eu confesso, eu disse. EU CONFESSO. E a oração se abriu num grande amém – o samba da legalidade cantarolado na cama quente demais no escuro morno do quarto. O samba da legalidade e eu pertenço. Somos todos pestiferados e recém-nascidos, somos todos pestiferados e recém-nascidos. A tua fuga na cidade sitiada, o sono virando samba e o samba trazendo o sonho. Os tendões repuxados me ferem e me agitam. Quatro noites atrás sonhei que eu estava tendo um filho, e foi muito tranquilo e indolor. Os aviões passam de três em três minutos. Hilary veio se sentar aqui, contou do irmão da amiga dela, conversamos as nossas mútuas raivas, e embora às vezes ela pareça não me escutar, estou aprendendo lentamente a respeitá-la como ser humano. Atrás do humano sem alarde. O simples e bom santo. [...]" - Carta de 21/01/70 (p. 218)
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