Sérgio Rodrigues - A vida futura
O mais recente lançamento do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues é um romance muito bem-humorado que aproveitando-se de seu virtuosismo com a língua portuguesa, utiliza ninguém menos do que Machado de Assis como narrador-protagonista; um autor defunto seria um perfeito narrador onisciente, considerando os seus poderes de além-túmulo, mas não é o caso aqui, como o leitor logo virá a constatar. Ainda não satisfeito, Sérgio coloca, de quebra, José de Alencar como seu companheiro de aventuras no Rio de Janeiro pandêmico do século XXI. O autor de Memórias Póstumas de Bras Cubas vem acompanhar o amigo imortal em uma missão muito especial: puxar os pés da professora que organiza um projeto de reescrita dos clássicos.
O orgulho ou a "vaidade que sobrevive à morte" é o ponto de partida da trama, quando os Jotas ficam sabendo, por meio de um boato nas nuvens, do projeto de popularização dos clássicos. Esta é a oportunidade para uma das muitas tiradas geniais de Sérgio Rodrigues de flertar com a filosofia machadiana, na forma e conteúdo do texto: "Seria o orgulho uma espécie de cabelo, eu pensava, de uma unha, parte mineral e imperecível da carcaça humana?", ou nesta outra passagem: "O mistério das cousas do universo guarda tanta obscuridade aos vivos quanto a nós, não fazendo a morte senão trocar nossa posição no tabuleiro: se antes jogávamos com as brancas, agora nos cabem as pretas. As regras, como a angústia, são as mesmas."
"A imortalidade das letras é para poucos, escrevi certa vez com a pena prematura dos vivos, mergulhada naquela tinta mista de arrogância e candura a que chamamos de sangue. Corrijo-me, leitor, leitora ou que outro gênero inventem de inventar. As nuvens que nos servem de leito lembram alojamentos militares, o pé do insigne poeta pernambucano no nariz do dramaturgo francês, o ironista irlandês a roncar junto da orelha peluda do romancista russo. É natural que tanto aperto desande por vezes em altercações ríspidas e babélicas, afugentando o sono. / Paciência, há que cultivá-la; e paciência eterna, se ocorre de estarmos na eternidade. As condições insatisfatórias de nossa instalação no Olimpo não devem preocupar os vivos: Já constituímos uma comissão para redigir em três mil vias, todas adornadas com excelentes carimbos, um requerimento aos andares superiores da administração celeste. A menção ao relativo desconforto em que padecemos a desmesura universal não pretende mais do que ilustrar a cena da chegada do boato." (p. 9)
Como exemplo do polêmico procedimento de popularização ou simplificação de textos literários – em termos politicamente corretos –, comandado pela professora Stella McGuffin Vieira, a clássica citação de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” se transformaria em algo assim: "Não tive a oprtunidade de ter filhos, não transmiti a nenhuma criatura a herança de nossas modestas aquisições." (p. 161). Imaginem a controvérsia no Olimpo dos escritores, habitado por Dumas, Flaubert, Dostoiévski e tantos outros, nomeados apenas por seus apelidos (um decreto celeste para tentar mitigar a questão dos egos literários), tais como os clássicos autores brasileiros: Alagoano, Dramaturgo, Russa, Delegado, estabelecendo um divertido processo de identificação para o leitor.
"Para resumir um caso comprido, meditei que um dos defeitos mais gerais entre nós, brasileiros, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério. Sabia-o antes de ser um autor defunto e mais o sei agora. A nata de nossa crítica literária levou sessenta anos para começar a quebrar o código de meu romance mais famoso, e hoje querem que ginasianos de joelhos ralados e álbum da Copa debaixo do braço decifrem tudo antes do bigode. Se conto isso a Molière, inspiro-lhe uma comédia em dois atos. [...] Eis a conclusão a que cheguei, gentis compatriotas: reescrevam-me à vontade! Cancelem palavras raras e chistes eruditos; amputem cisnes de Leda, hidras de Lerna e asas de Ícaro; aplainem sem piedade as ordens inversas, as ousadias sintáticas, as cousas grandes ou miúdas. Depois de tudo o que vi no mundo – nos mundos –, creio poder afirmar que já nada me fará mossa. Se de resto me agastar algum aspecto dessa novela, pago-lhes com um peteleco e, como dizem hoje, tchau." (pp. 17-8)
Machado de Assis demonstra estar menos interessado no estrago de suas obras pelo tempo do que José de Alencar, apavorado com a perspectiva de uma "segunda morte". Na verdade, o bruxo do Cosme Velho concentra a sua atenção em aspectos mais "existenciais" da trama, digamos, ao se encantar com Mariana, uma jovem estudante negra e não binária, moradora da Rocinha e que simboliza no romance as questões de gênero e raça. Sérgio Rodrigues escreve, portanto, sobre coisas sérias com leveza e um fino humor irônico, machadiano por que não dizer. Um livro recomendado, criativo e muito bem escrito, cujo único defeito é ser tão breve.
"De repente éramos três espremidos na poltrona de estampa de lírios, uns sobre os outros, e do primeiro beijo de Stella e Mariana eu posso ter participado também, entre desavisado e sonso; de todo modo, era tudo confuso demais para que eu possa afirmar qualquer cousa ao certo. Não segui com elas para a cama, isso posso garantir; talvez por ainda me restar algum pudor, como eu gostaria de crer, ou que sabe por pura incapacidade de me mover dali. Lembrei-me do Dramaturgo dizendo que o tempo também é lugar, é mais lugar do que o lugar. Quando ainda estava na poltrona, acariciando as coxas lácteas da professora em seu colo, Mariana tinha dito que daquele momento em diante queria ser chamada de Mar. [...] Não binário! Foi o que disse o Mar, a Mar, me tragando como uma ressaca para dentro de seu silêncio. O enigma humano da linguagem me esmagava." (p. 123)
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