Decio Zylbersztajn - O arquivo dos mortos

Literatura brasileira contemporânea
Decio Zylbersztajn - O arquivo dos mortos - Editora Reformatório - 360 Páginas - Design e Editoração Eletrônica: Negrito Produção Editorial - Lançamento: 2022.

O romance de Decio Zylberstajn tem início com a morte de Ataliba, um jornalista que se especializou em obituários e formou um arquivo com uma coleção de mortes peculiares. Ao longo da narrativa principal são inseridos nove obituários com histórias independentes, um recurso que permite ao autor dar voz aos falecidos que explicam o contexto de suas mortes. Talvez, esta seja uma fixação macabra na opinião das pessoas que normalmente evitam pensar na "indesejada das gentes", como era definida por Manuel Bandeira. Contudo, na visão pragmática do personagem, um fato simples e previsível: "Morte é quando tudo acaba, não há nada de inesperado nela. Aliás, inesperado na vida são os capítulos intermediários e não o capítulo final. A morte é perfeitamente previsível, quanto à vida, não se pode dizer o mesmo."

A condução da voz narrativa é feita em primeira pessoa por Fefo, um jornalista iniciante, amigo de Ataliba com quem aprendeu alguns segredos da profissão e o gosto pelos obituários que são analisados e discutidos em detalhes – como são debatidos os livros em um clube de leitura – por um grupo de amigos que se reúne à sombra de um araçá no cemitério homônimo em São Paulo: Lázaro, funcionário do cemitério; Ide, uma senhora aposentada e acumuladora que frequenta bailes da terceira idade; Grego, um policial aposentado e uma misteriosa professora de português. Ao final de cada reunião é lido um texto ficcional no qual os próprios mortos têm a chance de se expressar, mesmo que não sejam necessariamante pessoas, como é o caso de uma livraria tradicional que não sobreviveu ao surgimento das grandes redes nos shoppings.

"É possível que o som da máquina de escrever tenha sido o último que Ataliba ouviu. Passei meses nesse lugar onde recordo as últimas horas da sua vida. Garimpei na minha memória os fragmentos que encontrei. Tal como fazem os mestres da arte do Kintsugi com os vasos de cerâmica quebrados, juntei os cacos que se encaixaram e preenchi os vazios com as informações que guardei ao longo do tempo que durou a nossa amizade. Colei as peças, uma a uma, é certo que inventei fatos, porque sempre imaginamos o passado para tornar nossas vidas menos penosas. Inventei tanto que já não estou certo se os fatos ocorreram ou não, apenas que poderiam ter ocorrido. Naquela noite de novembro, Ataliba trabalhou a duras penas para concluir o obituário que o jornal encomendou, recebeu as visitas de Lena e de Choi, uma de cada vez, primeiro Lena, depois, Choi. Uma não sabia da outra. Imaginei que Ataliba havia se recuperado da depressão, que sua vida ganhara novos ares, e estava feliz por ter encontrado Choi. Antes do amanhecer Ataliba estava morto. Não teve tempo de ir ao lançamento do seu livro." (p. 9)

O romance descreve o último ano da vida de Ataliba, um homem solitário desde a separação da mulher, envolvida com a luta armada contra o regime militar e que acabou abandonando-o, juntamente com a filha Lena ainda criança. Seu amigo Fefo tenta descobrir o mistério que envolve Lena, uma criadora de perfis para políticos, artistas e pessoas ricas que querem a fama a qualquer custo. Lena está internada em uma clínica de repouso e tem verdadeira obsessão pelo mito de Lilith, que teria sido a primeira mulher de Adão e também a primeira feminista da história, rebelando-se contra a submissão da mulher e, por este motivo, expulsa do paraíso e excluída da versão oficial da Bíblia. Outra personagem importante na trama é Choi, jovem imigrante coreana, amante de Ataliba mas, na opinião de Lena, apenas uma aproveitadora.

"Eu fazia frequentes visitas à Ataliba e apreciava observá-lo trabalhar. Ele conversava com a velha Remington como se fosse uma colega de trabalho e compartilhaa comigo as queixas desde que deixara de frequentar o jornal. Certa vez ele me contou que passou a noite sem conciliar o sono e que, ao tatear a mesa de cabeceira à procura do relógio, teve a certeza de ouvir o som da máquina de escrever tinindo para acordá-lo. Ataliba pensou que estava ficando doido, depois achou que tinha perdido a hora de ir para a redação e saiu correndo a pensar que era um escravo do tempo. Só então respirou aliviado ao se lembrar de que não precisava mais ir todos os dias ao jornal. A rotina mantida por quatro décadas terminara, agora ele era um homem livre. Para fazer os freelas para o jornal bastavam duas visitas semanais à redação, era quando encontrava os colegas, falava do passado e recebia o pagamento pelos obituários que escrevia. Sentiu alívio ao perceber que sonhara. [...]" (p. 23)

A nós, os sobreviventes, cabe contar as histórias. Decio Zylbersztajn resolveu subverter este princípio ao dar voz aos mortos, os quais, por meio dos obituários literários, têm a oportunidade de relatar as suas próprias versões dos fatos, não necessariamente as versões verdadeiras, diga-se de passagem, mas quem pode ter certeza do que seja a verdade? Apesar do recurso do defunto-narrador – tão bem explorado por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas – não ser algo de novo na literatura, o autor soube encontrar novas formas de explorar o tema e, assim, por oposição, nos fazer refletir sobre a brevidade e a importância da vida.

"Todas as palavras pensadas são falsas, todas as palavras escritas são falsas, todas as palavras são falsas, menos uma – morte. Tal como ouvira de Ataliba, os funerais são a celebração daqueles que sobreviveram por mais um dia, não são uma homenagem aos mortos, são uma festa dos vivos. [...] A morte elimina os excessos, rapidamente o rosto do morto perde os traços que o marcaram em vida. Se desfaz a ironia, desaparecem a ira e o ódio, não haverá mais um sorriso moldado pelos músculos labiais. A morte apaga os trejeitos que revelam os sentimentos, o rosto do morto se transforma em um esboço, uma caricatura feita do essencial. A morte omite os elementos que, em algum momento no tempo, marcaram a personalidade do que agora é um cadáver. Cadáver tem personalidade? Quem encontrar Ataliba neste momento não terá ideia do caráter que existiu impresso na voz, no caminhar e nas palavras ditas por estes lábios. O que velamos é uma embalagem cujo conteúdo se perdeu para sempre. Eu me referi às palavras ditas? Novamente elas, as palavras, elas me perseguem, por mais falsas que sejam, foram as palavras ditas e escritas por Ataliba que transformaram a minha vida." (pp. 336-7)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Decio Zylbersztajn nasceu no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, em 1953, é escritor, agrônomo e professor da Universidade de São Paulo, autor do volume de contos Como são cativantes os jardins de Berlim (Refromatório, 2014) e Acerba dor (Reformatório, 2017) e do romance O filho de Osum (Reformatório, 2019), livro contemplado com o segundo Edital de Livros da Prefeitura de São Paulo. Vive entre as cidades de Gonçalves-MG e São Paulo-SP. 

Escreve no blog www.zylberblog.wordpress.com

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O arquivo dos mortos de Decio Zylbersztajn

Comentários

Carla Araujo disse…
Que história bem articulada! Parabéns, Professor.
Alexandre Kovacs disse…
Carla, obrigado pela leitura e comentário!

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